Neil Gaiman relança “Deuses Americanos”, prepara continuação e se mostra mais atual que nunca num momento em que os arquétipos caíram e os deuses, modernos ou não, definem a sociedade.
Os arquétipos já estavam por aí quando J.R.R. Tolkien sacramentou a estrutura da “jornada” em “O Senhor dos Anéis”, tanto é que as referências de Campbell mergulham na gênese da cultura humana e suas diversas manifestações, entretanto, literalmente, desde a saída dos Hobbits do Condado, criou-se uma linha de acontecimentos repetida ad eternum por jogadores de RPG, autores iniciantes e praticamente todo indivíduo envolvido em alguma atividade criativa, seja qual for o meio. Especialmente o titio George Lucas.
Da mesma forma que a obra de Tolkien foi formativa e definitiva nesse aspecto, outro marco na história literária e criativa aconteceu há dez anos, quando Neil Gaiman lançou seu “Deuses Americanos” (American Gods, distribuído no Brasil pela Conrad Editora) e chacoalhou essa estrutura de forma muito interessante. Até aquele momento reinavam os estereótipos, os heróis em busca de algo ou defendendo uma causa; depois dele, começou a era dos deuses – modernos ou obsoletos – destruídos pela nova dinâmica social da adoração indiscriminada, seja ela virtual ou real.
Não compreender essa nova estrutura é erro fatal, passível de morte rápida nessa Era na qual os adoradores deixaram de agradar e precisam ser agradados. Qualquer semelhança com a realidade é pura semelhança nesse campo de batalha deídico, que passei a chamar de Matadouro AG | 10 por conta de um detalhe na capa dura da edição especial dos 10 anos [Gaiman – AG | 10, um modo de inserir os créditos e o título de forma sucinta]. Ali, nem deus, nem mortal está seguro afinal, uma tempestade se aproxima.
Viagens à parte, “Deuses Americanos” é daqueles livros transformadores. Mesmo. E também incapazes de gerar indiferença, caindo na categoria “ame ou odeie”, como definiu o próprio Neil Gaiman, na perna de Los Angeles de sua book tour por conta do relançamento do romance em seu décimo aniversário, com mais de 100 novas páginas e uma nova introdução bastante pessoal.
Meio que sem querer, ou não, Gaiman comprovou a teoria base de seu livro: usou o culto à sua obra conclamando seus adoradores a lotarem teatros em diversas cidades nos Estados Unidos sem ajuda de anúncios de jornais, rádios ou internet, pois usou apenas suas contas de Twitter e Facebook e seu blog. Em cerca de duas semanas, 80% dos ingressos de Los Angeles estavam vendidos a um preço médio de $25 (com $35, o participante levava o novo livro autografado). Gaiman iniciou a obra com a pergunta: quando as pessoas de outros continentes imigram, o que acontece com seus deuses?
Além de levá-los consigo, os imigrantes ainda ajudaram a criar novas deidades por conta de novas demandas dos locais onde criaram raízes. Nada mais claro e óbvio, entretanto essa dinâmica – aparentemente repetida através dos séculos e das diversas movimentações humanas – ecoa nesse exato momento histórico. Transportando para termos atuais, o sujeito disposto a sair de seu isolamento cai na internet, encontra reflexos daquilo que acredita e, invariavelmente, dá força a “entidades” maiores e mais efetivas que seu objetivo original.
Gaiman brincou com isso com seu “Gordo da Técnica”, um deus da tecnologia, disposto a tudo para intimidar seus oponentes, inseguro até a última gota e abastecido pela devoção à rede e seus mecanismos, até então, insipientes. “Tenho tanta dó do deus do Myspace”, brincou Gaiman, mencionando a rápida ascensão e queda da plataforma.
Em essência beeeem resumida (socialmente falando, nada de pregação), religiões surgem a partir de uma demanda local e da devoção dos moradores ou da necessidade de lidar com algo incompreendido por um grupo específico. Os paralelos são óbvios e numerosos. Atualmente, se alguém precisa encontrar um parceiro, pode usar um site de relacionamento; sofre de solidão? Liga o Facebook ou o Twitter; quer uma resposta? Google It ou procura no YouTube; quer se inspirar? Lê um livro ou assiste um filme.
Tudo isso levando em conta o elemento básico: devoção. Não que existam pessoas criando templos ou orações para as redes sociais, mas o tempo de permanência, a dependência psicológica causada por elas e relações que existem exclusivamente na internet redefiniram a idolatria e, de certa forma, abastecem a teoria de Gaiman, que já fala abertamente numa continuação para Deuses Americanos que mergulharia mais ainda na questão da tecnologia.
Curiosíssimo ver essa natureza cíclica da humanidade se repetir num ambiente, até que se prove o contrário, definitivo em nossa evolução. E, assim como a História ensina, quem controla os deuses, controla os devotos. Mas antes de tocar nesse assunto, uma das maiores mudanças – que devem ser levadas em conta por todo e qualquer profissional envolvido com criação – é no comportamento desses segundo grupo: aqueles que acreditam, se dedicam ou, usando o termo religioso, nos fiéis.
Em escalas e formas diferentes, deuses sempre foram “temidos”. As espadas de fogo do Deus cristão, os raios letais de Zeus, o fracasso em batalha pela não devoção a Ares, e por aí vão, são exemplos dessa relação; logo, o devoto fazia de tudo para agradar seus deuses e usar seus favores. Agora a brincadeira mudou, nessa dinâmica virtual e moderna, o deus que ficar esperando a boa vontade de seus “clientes” em potencial cairá no esquecimento ou vai morrer rapidamente.
“Essa relação sempre foi muito dependente e, historicamente, os deuses precisavam ser presentes e realizar seus milagres; hoje em dia o nível de atenção e não comprometimento das pessoas é tão grande que os deuses viraram pedintes. Todos querem seu click, todos querem sua visita, sua atenção”, comenta Gaiman, em entrevista prévia a esse repórter.
De certa forma, nessa busca desenfreada por nossa individualidade, personalização de círculos de amizades, ferramentas e gostos, acabamos nos comportando muito mais como grupos de interesse do que como indivíduos, vinculados a uma ferramenta, uma linguagem, um estilo de comportamento; falando em termos gerais, claro. Tudo isso se aplica a diversos âmbitos, inclusive o religioso. Analisando um exemplo clássicos da Ficção Científica, Philip K. Dick já batia nessa tecla com a figura de Mercer, ao mesmo tempo salvador e deidade; um deus massificado, presente pela tecnologia – num aparelho que induzia o devoto a uma penitência com consequências físicas – e extremamente dependente de “medo da punição” para gerar as visitas diárias a sua rede neural.
Enquanto muita gente perde horas e horas tentando desvendar como as pessoas pensam, talvez seja mais fácil e efetivo descobrir quem são e onde estão, o resto é consequência, para o Bem ou para o Mal. Aliás, eis um conceito não presente na obra de Neil Gaiman. Longe da mesmice de “áreas cinza”, o autor aposta na simples existência, deixando sua avaliação por conta das circunstâncias ou da evolução histórica. Afinal, deuses são deuses, quem perde as estribeiras e faz bobagem, invariavelmente, somos nós.
Sobre a nova edição
A nova versão de “Deuses Americanos” é maior, mas não necessariamente muito mais interessante. Mais completa, sem dúvida, e prato cheio para fãs do autor (o/).
A partir de agora, deve se tornar a versão oficial e definitiva desse clássico, cuja função é de grande espelho das movimentações sociais e geográficas de nossa raça, afinal, deuses (suas tendências, estilos, realizações e efeitos) são reflexos de quem os cultua.
A relação entre Shadow e Wednesday ganha mais complexidade, assim como as ideias de Shadow (que narrava a história na primeira versão, mas, pelo fato de falar pouco, complicou a vida ao autor, que optou pela narrativa em terceira pessoa). As grandes questões, o debate fundamental sobre simbologia e as “esquisitices” norte-americanas, como diz Gaiman, continuam lá e aumentaram um pouco também.
Durante a palestra, ao lado do ator Patt Oswalt – que deu um show à parte por sua devoção absurda à obra -, o autor comentou seu nível de estranheza quando foi conhecendo as peculiaridades dos Estados Unidos quando deixou a Inglaterra e fixou residência em Minneapolis. No exemplo mais clássico está uma cidadezinha bem fria no inverno, onde os homens colocam um carro velho no gelo do lago congelado e fazem apostas para ver em que dia ele vai afundar!
Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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