Feiras de quadrinhos, a invasão do digital, o futuro do papel cheio de cores… A Fest Comix, em SP, foi um bom cenário para descobrir um pouco sobre o futuro dos quadrinhos. E Gustavo Vieira, do Espinafrando, traz algumas importantes reflexões sobre este mercado.
Saio de uma visita relâmpago da Fest Comix, uma feira anual de quadrinhos na cidade de São Paulo.
A cada ano que passa, repito o mantra: nunca mais! Dessa vez, periga ser pra valer. Em parte, porque estou ficando velho e ranheta. Pra encarar uma multidão (e o evento está cada vez mais lotado), tem que valer a pena. E a feira está cada vez valendo menos. Pra mim. São pouquíssimas as novidades. As filas, enormes.
Os estandes externos continuam atraindo como passeio. A Limited Edition estava bacana como sempre e o destaque foi a exposição da turma do PlayBrasilMobil com os Playmobils temáticos — uma cena inteira de Walking Dead! E o que era aquele Playmobil do Chuck Berry?
Há bastante memorabilia nerds (HQs, camisetas, estátuas, bonequinhos, games). Mas ainda é pouco pra justificar encarar o perrengue.
Pros descontos valerem a pena, há de se comprar muito. Sandman edição definitiva é compra certa por 40 mangos a menos, mas fica tudo diluído pela equação ingresso + estacionamento + combustível.
E isso me levou a refletir sobre o mercado de HQs brasileiro.
Panorama
Comparando com o que tínhamos nos anos 80 e 90, quando a Abril praticamente monopolizava e gibi era coisa de criança (no máximo de adolescente), é inegável que tivemos avanços. Nunca antes tivemos tantos títulos disponíveis, de tantos gêneros diferentes, publicados por tantas editoras —mesmo com o domínio da Panini nos licenciamentos, tanto nos super-heróis quanto nos mangás, mais Maurício de Souza. Sem contar os independentes, como Murilo Martins e seu Love Hurts.
Por outro lado, a oferta em demasia também gera um problema: para o fã de HQ, é preciso optar, não cabe tudo na carteira. Na disciplina do marketing moderno, existe um conceito chamado share of wallet, que representa justamente o percentual médio de gasto com um item de consumo de uma determinada marca ou empresa. E histórias em quadrinhos, no Brasil, estão caras demais pra renda do brasileiro.
Principalmente quando existem alternativas. E hoje, para o nerd típico (se é que existe um), alternativa é o que não falta. Tirando os gastos essenciais, o que sobra para o supérfluo é quase nada — e cultura pop é supérfluo.
Aí entram dois fatores que não existiam antigamente: a pirataria e a opção de comprar quadrinhos digitais.
Pelo que vejo nos comentários em sites especializados, a molecada não está nem aí. Baixa tudo em PDF de forma ilegal. E quem não cai na tentação porque enxerga que pirataria é meio que a autodestruição de um mercado, e ainda tem um tablet, uma boa noção de inglês, e se importa mais com o conteúdo do que com a coleção na estante (a absoluta minoria), tem a opção de comprar no ComiXology.
O que nos leva a dois estudos de caso sobre a política de preços das editoras brasileiras.
Walking Dead x Os Mortos Vivos
Duas semanas antes da Fest Comix, rolou uma promoção de Walking Dead no ComiXology. Ainda não tinha comprado o volume 8 de Os Mortos Vivos, publicado a passo de tartaruga pela HQM Editora no Brasil. Pelo preço praticado na edição nacional, comprei 3 volumes da versão digital em inglês.
Transmetropolitan x Transmetropolitan
Fiquei muito feliz ao saber que a Panini daria continuidade à Transmetropolitan aqui no Brasil com o lançamento do 3º encadernado, reunindo 12 edições em capa dura. Até ver o preço: R$83,00. No mesmo fim de semana da Fest Comix, a Transmet entrou em promoção no ComiXology: cada edição à US$0,99. Paguei cerca de R$24,00 pelo mesmo conteúdo em inglês, em formato digital.
Conteúdo Digital, mais uma vez…
Hoje, o digital pode ser uma opção para poucos. Há muitas barreiras: a língua, a moeda, a mídia — porque pra ter uma leitura decente, tem que ser num tablet (foi mal, PC). Mas não se engane: em 5 ou 10 anos, o que é uma tendência tímida vai virar establishment. Mesmo levando em conta que ler no papel é infinitamente mais gostoso.
As vantagens do digital são muitas. Ter acesso a conteúdo do mundo todo a um preço acessível são apenas duas delas, talvez as mais fortes.
A análise
Não vou entrar no mérito da composição de custos das editoras brasileiras, até porque a desconheço. É certeza que o custo de impressão, distribuição, marketing e licenciamento é mais alto do que o digital, sem contar que dei sorte de pegar duas promoções com o preço bem abaixo do normal.
Mas que há algo de errado na sua política de precificação, isso há.
Tomemos o mercado americano como benchmark mais uma vez, por ser bem mais maduro que o verde e amarelo. Por lá, as editoras enfrentam o envelhecimento de sua base de leitores, que não se renova.
Os especialistas apontam dois motivos.
Um deles é a linha editorial das duas gigantes que dividem 75% do mercado (Marvel e DC). Uma linha que não tem apelo aos mais jovens (há tempos que histórias em quadrinhos deixaram de ser coisa de criança) e que dificulta a entrada de novos leitores com o peso de décadas de cronologia e tramas intrincadas que se espalham por diversos títulos mensais ao mesmo tempo (tente comprar uma revista isolada do Homem-Aranha, dos X-men ou dos Vingadores e eu te desejo boa sorte para tentar entender o que se passa ou então pegar o fio da meada).
O outro motivo é mais prosaico: o preço. R$7,00 a R$8,00 por uma revistinha com cerca de 20 páginas de uma única história que você obrigatoriamente terá que comprar no mês seguinte para saber como continua não é exatamente o que se pode chamar de barato – nem aqui, nem lá.
Voltando para o mercado nacional, aqui ainda temos a vantagem dos mixes mensais: 3 a 4 títulos americanos viram um brasileiro, por mais ou menos o mesmo preço. Só que temos desvantagens: para os mixes se tornarem viáveis comercialmente, não podemos ter apenas a nata reunida em um único título, pois só ele irá vender. Então, caímos na armadilha de um título bom, 2 mais ou menos e 1 ruim para compor uma edição brasileira. Acaba dando na mesma.
Quem quer a nata, tem que ter paciência e ir atrás dos encadernados, compilações de edições avulsas com uma história completa, começo, meio e fim. Como Transmetropolitan ou Os Mortos Vivos.
E aí, me pergunto se as editoras brasileiras não estão cometendo os mesmos erros das americanas cobrando um preço tão alto. Será que não estão canibalizando o mercado? Será que não estão afastando novos leitores?
Porque não vejo alguém em sã consciência e não-fã gastando quase 100 mangos numa história em quadrinhos, por melhor que seja o acabamento e o conteúdo. Principalmente quando temos tantas opções de entretenimento disponíveis disputando um pedaço de nossa carteira. Games, filmes, séries, música e livros sempre tiveram precedência sobre gibis, que ainda hoje é uma arte marginal.
Na lógica cruel do mercado, ainda vale a mais simples das leis, a lei da oferta e da procura. A baixa demanda obriga a cobrar um preço maior para sustentar a operação, já que não há escala suficiente. O preço maior afasta o público. É um círculo vicioso.
Seria um triste fim se o público diminuísse tanto a ponto de acabar com a publicação de HQs no Brasil. Ainda há tempo para se repensar tudo e tentar novos caminhos. Mas as editoras não podem bobear.
Republicado de Espinafrando com permissão.