Quando Quentin Tarantino foi alçado ao status de mito pop em meados da década de 1990, despertou em muita gente, nas mais variadas áreas das indústrias criativas, aquele espírito rebelde e exibicionista característicos de seus filmes.
Pessoas entusiasmadas com o conto à la gata borralheira, já que a vida do diretor é geralmente narrada como o “fã que chegou lá”, após construir sua cultura cinematográfica através de um trabalho como atendente de videolocadora.
É verdade que sua paixão e conhecimento já vinham antes disso, mas o que fica marcado é a história de quem triunfou quando já estava quase se conformando a viver apenas como um geek de cinema, à margem da indústria.
Depois de surpreender com “Cães de Aluguel”, e tomar o mundo de assalto com “Pulp Fiction” – primeiro filme independente a ultrapassar 100 milhões de dólares em bilheteria – Tarantino mudou o cinema autonômo, criando uma nova geração de cineastas ávidos em dar a cara a tapa e desafiar as engrenagens estabelecidas de Hollywood.
Seu estilo, com toda aquela violência aletória e indiferença ao que normalmente poderia chocar, se espalhou por outros tipos de processos criativos. Referências e influência mercadológica que aumentavam a cada novo filme, incluindo “Jackie Brown”, “Kill Bill” (sua obra-prima) e “À Prova de Morte”. E para um diretor onde a derivação é sempre um elogio, melhor ainda. Hoje, aos 49 anos, Tarantino é venerado como ele mesmo faz com suas infinitas referências, sejam obscuras ou além disso, dos clássicos westerns spaghetti de Sergio Leone, passando por produções B japonesas e Godard, por exemplo.
Porém, todo rebelde cresce, e com ele o seu trabalho. “Bastardos Inglórios” pode ter repetido todos os típicos elementos tarantinescos auto-indulgentes e de estilo exuberante, mas marcou (definitivamente ou não) o amadurecimento de Tarantino.
Se antes seus filmes podiam ser acusados de vazios e estéreis emocionalmente – algo que discordo em parte, já que choveu no meu olho durante “Kill Bill Vol.2″ – reimaginar a história da Segunda Guerra Mundial para promover a vingança judaica representou finalmente o diretor tomando partido.
Suas óperas de sangue e desforra enfim ganhavam o cinema mainstream, com uma justificativa ideal para quem queria assistir e até gostar da violência na tela com alguma motivação ideológica.
“Por que eles não se revoltam e matam os brancos?”
Como em outros Tarantino’s, este é um filme de ação apaixonado pela conversa
“Django Livre” – indicado a 5 Oscar’s, incluindo Filme e Roteiro Original – é um novo forte representante do crescimento do diretor, não mais influenciado apenas por um espírito juvenil, mas preocupado novamente em incluir uma perspectiva histórica para dar vazão a vingança e, porque não, também ao amor.
Django (Jamie Foxx) é um escravo liberto que, em 1858, pouco antes da Guerra Civil nos Estados Unidos, atravessa o Texas e o Mississippi para salvar sua esposa das mãos do cruel fazendeiro Calvin Candie (Leonardo DiCaprio). Em sua companhia, o caçador de recompensas alemão, Dr. Schultz, transformado instantaneamente no personagem mais interessante do filme – e o único branco empático – no momento em que Christoph Waltz aparece na tela.
Tarantino disse em entrevista há alguns anos, que diversos diretores usam a relevância social como disfarce nos filmes, para dessa forma conseguir justificar a violência. Não dá pra dizer que ele mordeu a língua, mas o contexto existe. Como um líbelo black power, “Django Livre” escancara os horrores da escravidão só para, no momento seguinte, retribuir a violência étnica e racial com humor provacativo e ódio num teatro de excesso e brutalidade.
Como em todas as obras de Tarantino, é um filme de ação apaixonado pela conversa, onde Waltz é o representante principal de uma retórica florida que hipotiza vítima e espectador antes de disparar o primeiro tiro. A cena inicial e a logo após, numa taverna no Texas, reforçam a capacidade do diretor de construir uma tensão crescente e silenciosa com conclusões imprevisíveis, além das frequentes mudanças de clima: do horror para o riso, do nervosismo para a ironia.
As referências de westerns vem, dessa vez, muito mais dos filmes de Sergio Corbucci do que Sergio Leone, com o Djangos estrelados por Franco Nero na década de 1960, além do pastiche ingênuo do blaxploitation. Tudo temperado com belos travellings no sul dos Estados Unidos, apesar da pouca intervenção estilística de texto ou outros elementos comuns nos Tarantino’s anteriores. Provavelmente o “MISSISSIPPI” gigante atravessando a tela tenha sido o bastante.
Um dos filmes mais divertidos da safra, capaz de transformar quase 3 horas de projeção em minutos
A trilha sonora tem bons achados – com inéditas de Luis Bacalov e Ennio Morricone – mas não é tão inspirada quanto as escolhas dos filmes anteriores. Porém, um detalhe reforça o trabalho autoral de Tarantino. As músicas foram tiradas diretamente do vinis dos anos 1970 que fazem parte de sua coleção pessoal. Segundo o diretor, ele prefere usar sua própria música – mesmo que com falhas e ruíudos – do que pedir versões digitais “limpas” para as gravadoras, pois dessa forma os espectadores podem ouvir do jeito que ele ouve.
Ao abordar a escravatura, um contexto deixado absolutamente de lado nos filmes do gênero western, Tarantino confronta a tirania do racismo, e até incomodou os norte-americanos com o uso excessivo (109 vezes, para ser exato) da expressão preconceituosa “nigger”.
Outra crítica recorrente ao filme é o excesso de tiradas cômicas, e a piada estendida por tempo demasiado na hilária cena das máscaras e o buraco dos olhos. Porém, é justamente essa mistura característica – entre diálogos, violência e humor – que torna “Django Livre” um dos filmes mais divertidos da safra, transformando 2h45 de projeção em minutos.
O set sanguinolento de Django Livre
O que falta mesmo para o sétimo filme de Tarantino é um final climático e eloquente como o de “Kill Bill”, já que aqui ele parece demorar a se decidir qual momento será digno da vingança definitiva. Sua pequena participação nesse momento pode distrair, mas Tarantino obviamente não parece diposto a perder mais uma oportunidade de se divertir com sua obra, o que é justo depois da experiência de cinema e entretenimento que acabou de proporcionar.
Há quem diga que o diretor não está de fato interessado em contextos históricos, só os utilizando como muletas para seus planos sanguinários, mas sou da ala que acredita no amadurecimento do diretor como contador de estórias. Se seus filmes influenciaram toda uma geração de criativos, Tarantino prova que vai continuar a fazê-lo, mas agora com a rebeldia e estilismo visual ganhando uma nova dimensão narrativa.
“Django Livre” estreia no Brasil na próxima sexta, 18 de janeiro.
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Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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