Todo filme surge de um conceito. Todo conceito reflete alguma necessidade, seja de mercado ou pessoal. Quando a demanda determina a mensagem, normalmente, o resultado é uma colagem capaz de replicar a moda do momento e alienar qualquer um alheio a esse mundo. No caso da motivação pessoal, a ideia chega num pacote completo, devidamente adequado com as experiências do criador e com as projeções do que ele acredita ser correto ou plausível. Quando isso acontece, o espectador se vê diante de um reflexo devidamente filtrado de uma era, de um livro, de um filme, de um trauma ou alegria.
Essa é a essência de “Depois da Terra”, que, embora seja roteirizado e dirigido por M. Night Shyamalan, é baseado em argumento de Will Smith, um dos atores mais rentáveis, carismáticos e efetivos de Hollywood. Smith passou a juventude entre a transformação dos anos 1970 e as origens da cultura pop nos anos 1980. O resultado não poderia ser outro, essa ficção científica é uma jogada de segurança que reflete uma época e dá a Smith mais uma oportunidade de trabalhar ao lado do filho, Jaden. Sendo mais direto, “Depois da Terra” é uma nova versão de “Guerra nas Estrelas”, de George Lucas.
Com uma mensagem ecológica preventiva, o roteiro foca em sua vocação de origem: estudar a relação entre pai e filho
Por ter estudado tanto a jornada do herói e os tratados de Joseph Campbell, é até fácil ficar vendo essa trajetória em todos os filmes. Em tese, todo herói de filme passa por alguns dos momentos analisados por Campbell, entretanto, em “Depois da Terra” o paralelismo é claro e descarado. Toda a trama é armada para ser um grande rito de passagem clássico, visto tanto pelo lado daquele que o vivencia e daquele que valida todo o processo, ou seja, do pupilo e do mestre, do pai e do filho.
O herói mergulha até as profundezas, enfrenta os medos – novos e antigos –, sofre a perda e enfrenta contempla a própria morte antes de se reerguer e concluir o rito de passagem. Desde o início da saga da família Skywalker, os roteiristas dos filmes de ficção científica tem uma busca eterna: fugir disso e encontrar modos de esconder as referências. Esse não é o caso. Ao assumir a estrutura clássica, o roteiro pode incluir uma mensagem ecológica preventiva e focar em sua vocação de origem: estudar a relação entre pai e filho.
Shyamalan continua com voz ativa e sabe dirigir, simplesmente não teve, de acordo com o resto do mundo, pelo jeito, uma nova ideia capaz de superar “O Sexto Sentido”
Embora não chegue a nenhuma conclusão brilhante ou transformadora, faz esse aspecto de forma interessante, com grande atuação de Will Smith e uma direção neutra de Shyamalan. Ele precisava dessa paz de espírito, precisava fazer algo normal, algo seguro para se levantar de tanta crítica e desprezo. Gostar de filmes é algo pessoal, mas, pelo ponto de vista técnico, à exceção de “Fim dos Tempos” – que é uma tragédia assumida em todos os aspectos – e do questionável “O Último Mestre dos Ar”, os demais filmes autorais tem valor (“Dama na Água” é um clássico do gênero, por exemplo).
Shyamalan continua com voz ativa e sabe dirigir, simplesmente não teve, de acordo com o resto do mundo, pelo jeito, uma nova ideia capaz de superar “O Sexto Sentido”. A insistência e a birra de se comparar cada segundo em tela de seus filmes ao longa com Bruce Willis nunca vai desaparecer e se tornaram em maldição. Ligando, ou não, ele continua trabalhando. Dessa vez, optou por dar voz a outra pessoa, alguém que atrai menos atenção negativa e cujos números de bilheteria são incontestáveis. A ideia de Will Smith é simples, mas poderia funcionar. O problema é o filho.
Shyamalan e Smith no set de After Earth
Como em todo filme sobre ritos de passagem, o herói precisa ser carismático e envolvente. Jaden Smith não é nenhum dos dois. Tem jeito atlético, claro, e parece com o pai, mas ao dividir tela com um ator tão tarimbado e espirituoso – mesmo fazendo cara de sério o tempo todo –, o garoto perde a briga e prejudica. Nesse cenário, a trama simples transforma-se em algo tolo e previsível. Bem, isso já é desde o princípio, afinal, o final feliz é óbvio, só não se sabe para qual dos dois personagens. Neo e Luke Skywalker tinham toda aquela bravura e avidez a oferecer, Kitai oferece apenas o medo e a insegurança. Aliás, graças à campanha de marketing, o uso do medo no filme se dilui, pois o conceito do “Medo é uma opção” é interessante. Ficaria melhor caso fosse fruto de uma construção narrativa, não do pôster do filme. Como se identificar com um herói inseguro? Neo seguiu o coelho buraco a baixo, Luke queria avançar para cima de Vader na hora da morte de Ben Kenobi, Kitai vê onde está o problema e corre para o outro lado.
Há um pouco de romantismo no roteiro de “Depois da Terra”, pois além da visão idealista do futuro do planeta, existe o vínculo com o clássico “Moby Dick”, de Herman Melville. Embora desprovido de citações diretas, a obstinação de Ahab está pulverizada ao longo da trama e o conceito de “ação-reação” que o homem exerce sobre a natureza são constantes. Ele tenta ser provocativo como a ficção científica pede e atemporal como precisa ser. Quase acerta no primeiro e teve êxito no segundo. Pensar nas limitações humanas sempre rende boas histórias, uma vez que mesmo nos futuros de Asimov, Clarke e Heinlein, o planeta pode mudar, mas o ser humano continua sendo o mesmo.
Há valor nessa tentativa, na sinceridade de um astro que já se revelou sonhador anteriormente. É preciso respeitá-lo, gostando ou não do filme.
Será por isso que contamos tantas vezes as mesmas histórias? Na esperança de que algum dia isso mude? Pelo menos pelo olhar dos roteiristas atuais, continuamos passíveis das mesmas fraquezas e deficiências. No caso desse filme, o medo é o grande inimigo. Um homem sem medo é invencível, é o que precisamos, é o que nossos inimigos temem. Imagino um jovem Will Smith dizendo isso a si mesmo quando iniciou a carreira e enfrentou todas as dificuldades do mundo do entretenimento. Seja corajoso, não demonstre fraqueza, ignore o medo e acredite na força de vontade. Funcionou na vida real, por que não repetir a dose na tela?
Há valor nessa tentativa, na sinceridade de um astro que já se revelou sonhador anteriormente em “À Procura da Felicidade” e se encaixa perfeitamente no papel de herói salvador como em “Eu, Robô” e “Eu Sou a Lenda”. Ele tem uma visão. Um credo. E apostou nisso. É preciso respeitá-lo, gostando ou não do filme.
O orgulho exacerbado pelo talento questionável do filho pode ser o calcanhar de Aquiles, mas, fica claro que o astro respirou a corrida espacial, se maravilhou com “Guerra nas Estrelas”, deve ter se imaginado como Indiana Jones e sonhou com uma chance de explodir o Tubarão e, agora, devolve tudo que sentiu. Na esperança que embarquemos com ele nessa aventura de redescoberta, de solidão e com boas pitadas de bom-humor. Penso só ter utilizado o termo “blockbuster pessoal” para “Sucker Punch”, de Zack Snyder, mas vale para “Depois da Terra”. É uma homenagem de um astro, não de um roteirista, àquilo que ele viveu e ao que acredita. É simples, revelador e pode ser poderoso. Depende do espectador.
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Fábio M. Barreto é jornalista, cineasta e autor da ficção científica “Filhos do Fim do Mundo”.
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Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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