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O oceano de emoções de Neil Gaiman


Criatividade é uma coisa curiosa. Venho perguntando sobre isso aos principais entrevistados nos últimos cinco anos. As respostas são as mais variadas possíveis e cada um encara o ato criativo de um jeito, conforme o esperado. Não há regras. Há apenas uma ideia executada de forma certa e capaz de atrair a atenção do público. É isso: ou funciona e nunca esquecemos, ou não.

Livros marcantes acontecem dessa forma, mas partindo de um ponto bastante subjetivo, arrisco dizer: livros não são bons ou ruins. Eles apenas são. Quem define todo o resto é o leitor. Duas pessoas nunca vão ter a mesma opinião sobre alguma coisa, não importa o quanto similar ela seja, assim como ninguém vê exatamente as mesmas cores, tem as mesmas sensações ou lembranças. Esse conceito está presente, entre tantos outros, em “O Oceano no Fim do Caminho”, novo romance adulto de Neil Gaiman.

Embora as dinâmicas sociais, e muitos dos produtos da cultura moderna, insistam em ampliar os tons de cinza e a agregar valor quase utópico à relação Bem & Mal, boa parte da opinião online divide-se em extremos. Gostar ou não gostar; genialidade ou lixo; se entendi o livro sou brilhante, quem não entendeu é burro. E a lista segue. Parece haver uma desconexão completa entre a mensagem do entretenimento e o que, de fato, é recebido pelo público. De que adianta George Martin, por exemplo, subverter tanto as regras clássicas se, na vida social (tentei chamar de real, mas aí você pensa que esse “real”, na verdade é virtual, e vira uma zona), ainda é oito ou oitenta? Aí entra uma marca registrada de Gaiman: quase tudo é o que é, mas absolutamente tudo pode ser qualquer outra coisa.

Amanda Palmer e Neil Gaiman

Amanda Palmer e Neil Gaiman

“O Oceano no Fim do Caminho” foi escrito para a esposa de Gaiman, a cantora Amanda Palmer, não para sustentar esse artigo. Mas, o faz mesmo assim. Ele compactua com Dickens no início de “Grandes Esperanças”, ao garantir apresentar nada mais que lembranças e emoções. Vislumbres de uma vida há muito esquecida, mas, ao mesmo tempo, constantemente presente. Algo fundamental. Algo que simplesmente ressurge quando precisamos dele.

Neil Gaiman

É assim com as grandes ideias, não? Elas aparecem, claro, por vezes fruto de demandas, mas elas nos são apresentadas e temos a opção de aproveitar ou não. Há uma grande lição na narrativa de “Oceano”, que já foi explorada por Gaiman, por exemplo, em “Deuses Americanos”, e ela é um prato cheio para criativos de todos os ramos. O conhecimento está ao alcance de quem se dispõe a olhar além das barreiras, de quem consegue enxergar novos símbolos e peitar paradigmas. Muito idealista? Talvez. Entretanto, ele promove esse chamado à batalha, uma motivação tão genuína (embora fruto da manipulação e organização narrativa clara) e envolvente que, a primeira coisa que se pensa ao terminar um de seus livros é: ok, o que vou escrever agora? Preciso descarregar tudo aquilo que aprendi, todas as epifanias trazidas pela história!

Até que você se esquece de tudo por causa das contas, dos prazos, das reuniões, das frustrações com amizades falsas, com a vida. Gaiman também é o primeiro a alertar sobre isso. Momentos de grande iluminação desaparecem com a mesma fúria e velocidade com a qual surgiram. Eles trazem felicidade e uma sensação interessante por conta da constatação, em tese inerente a todos nós, mas cerceada pelas travas sociais: posso criar/fazer/inventar com livre arbítrio. Posso fazer a diferença, nem que seja apenas para mim. Esse é um jeito de ver toda a temática trabalhada pelo autor.

Há quem veja pelo aspecto puramente fantasioso, com a existência de outros mundos, de seres mais velhos que a história mais antiga. Ou ele pode ser apenas um autor de contos de fadas modernos, que tem cabelo estranho, se veste de preto e não é Tim Burton. Nenhuma das respostas está errada e, literalmente, o importante é a jornada. Isso a obra de Gaiman (e qualquer outra, bem da verdade) requer: comprometimento com a jornada. “Oceano” é uma das jornadas mais puras ao focar num garoto do interior da Inglaterra, repleto de menções autobiográficas em termos espaciais – “não baseei o protagonista na minha personalidade, mas nos lugares onde cresci”, disse o autor ontem, num evento para fãs na Califórnia, em que participei – e, como Gaiman também explicou, “emoções”.

Neil Gaiman

Felizmente, não li o livro. Foi meu primeiro audiobook. Por ter comprado ingressos para esse evento, onde iria adquirir também o livro autografado, utilizei o Audible (serviço de audiobooks da Amazon, que tem me encantado ultimamente) e comprei na pré-venda. No dia 18 de junho acordei e o arquivo estava sendo baixado automaticamente.

Marca registrada de Gaiman: quase tudo é o que é, mas absolutamente tudo pode ser qualquer outra coisa

Para meu azar, dias depois, um acidente de percurso inutilizou meu olho esquerdo e precisei de repouso absoluto de coisas visuais. Computadores machucavam o olho bom, ler, nem pensar. Quem me fez companhia? O audiobook, cuja narração foi feita pelo próprio autor. Entendi como as boas rádio novelas eram tão populares no passado. Ao ter contato com as vozes imaginadas pelo autor, pelos nomes pronunciados da maneira correta e a atuação por trás de cada personagem, encontrei um novo modo de aproveitar esse mergulho emocional característico de Gaiman. Recomendo a experiência. Stephen King narrou boa parte de seus próprios audiobooks, então opção não falta.

Por não ter lido, e, dessa vez, ter ocupado o lugar de ouvinte enquanto a história chegava, surpreendente, sem pular parágrafos ou sem dicas da diagramação, entendi quando ele fala de emoção. Muito do começo da história do Protagonista (ele não tem nome, e isso não importa; adoro isso, inclusive, escrevi meu romance inteiro sem nomes, o que gerou muita divisão e crítica, mas aí está mais uma prova de que, o nome em si, é apenas um elemento, não tudo que importa num personagem) gerou identificação com minha própria infância, fiquei traçando paralelos e inevitavelmente pensando: “bem, agora, escrever sobre esse assunto vai ficar mais difícil, afinal, ele acabou de estragar a festa”.

Essa é uma coisa boa. Confirmar ideias ao ver um mestre trabalhando um conceito no qual você já pensou. Você perde o conceito, mas ganha a experiência e a certeza de que é possível fazer algo bom com um assunto tão simples. O modo como Gaiman encadeia ideias e constrói as frases é tão simples, que parece ser fácil. Sempre tenho a impressão de que, uma vez escrito por ele, algo se transforma em realidade. Como eu poderia escrever de outra forma? Não existe. Essa ideia existe e há um modo de escreve-la, e esse jeito acabou de ser utilizado. Bem, pelo menos naquele contexto. Funciona.

Neil Gaiman

Funciona por ser emotivo e é disso que as grandes mensagens são compostas. Tentamos fazer de tudo para demonstrar sofisticação, entendimento sobre a sociedade e a cultura, estudamos muito e continuamos nos apaixonando, tomando sustos com filmes de terror, chorando com “A Lista de Schindler” ou no final de “P.S. Eu Te Amo”. Mergulhar na infância pode ter esse efeito, e essa é uma das maiores realizações de “Oceano”, ao permitir o retorno às brincadeiras, às descobertas e explorações inerentes a uma fase na qual a mais simples das tarefas resultava em grandes aventuras. E construía caráter.

Há uma grande lição na narrativa de “Oceano”, e ela é um prato cheio para criativos de todos os ramos

Sem apelar para lições de moral ou definir as coisas, o livro vai na contramão e abre possibilidades, exige releituras e cria uma dúvida positiva sobre o que fazemos ou deixamos de fazer. É positivamente estranho notar tantas características únicas num livro que começou como um conto, virou noveleta e, de repente, havia se transformado num romance que desbancou Dan Brown no topo da lista de mais vendidos do New York Times.

“O Oceano no Fim do Caminho” é um livro de memórias que não vivi. Bem, não oficialmente, pois a partir de agora, ele definiu como eu gostaria de ter escrito as memórias que, de fato, vivi. Falando em memórias, na noite de ontem criei várias delas. Muito boas por sinal. Participei do evento em Glendale, ao lado de Los Angeles, e depois de meses de espera, duas horas na fila, o incômodo de ter que sair por aí usando um tapa-olho e ansiedade por estar carregando um exemplar do meu romance debaixo do braço, lá estava Neil Gaiman.

Sempre grande orador (procure no YouTube, os discursos inaugurais e palestras deles são verdadeiras aulas de escrita e vida), bateu um papo descontraído com o moderador Geoff Boucher e leu um capítulo de “Oceano”, respondeu perguntas do pessoal, falou da relação “contar segredos sobre próximos personagens/livros no mundo online” e, felizmente, falou um bocado sobre o contato com Stephen King, que o aconselhou a “aproveitar o momento”. Ele não seguiu o conselho, se arrependeu e, quando aprendeu a lição, viu a vida melhorar. Afinal, parar de esperar pelo que ele chama de “polícia da fraude”, que chegaria em sua casa dizendo “a gente sabe! Você não presta para ser escritor, hora de arrumar um emprego de gente normal”, deve aliviar a consciência de qualquer um.

Por conta de uma plateia de quase 600 pessoas totalmente devotas (não faltavam cosplayers de “Sandman”, camisetas de “Doctor Who” e inúmeros títulos para autógrafo), cada piada era recebida com aplausos, gargalhadas e emoção. Entretanto, isso não acontece por conta de uma paixão cega ou idolatria pura, Gaiman faz por merecer. É uma das pessoas mais atenciosas que já vi, e quem o conhece nos bastidores garante que é a mesma pessoa.

Neil Gaiman

Felizmente, comprovei isso pouco depois. Esse foi meu terceiro encontro com Gaiman. No primeiro, pude entrevistá-lo durante o lançamento de “Coraline”. Depois participei de um evento similar, no aniversário de 10 anos de “Deuses Americanos” (escrevi sobre aqui no B9) e, agora, nessa noite de autógrafos em Glendale.

Nas duas primeiras vezes, eu era apenas jornalista e fã. Ontem, também era escritor. E estava nervoso. A condição de saúde acabou ajudando e pude ser um dos primeiros a receber o autógrafo. Ao meu lado, igualmente nervoso, um garoto de 11 anos carregava uma cópia de “Odd e os Gigantes de Gelo”, curiosamente, eu também. Foi o primeiro livro que li com a Ariel e escolhi para ser personalizado. Cheguei à mesa e veio a dúvida: tirar foto ou falar com ele? Desisti de registrar o momento e decidi criar uma memória inesquecível. Foi melhor do que pensei. Além dos dois volumes de Gaiman, levei um exemplar de “Filhos do Fim do Mundo”, com dedicatória e tudo, para presentea-lo. Essa era a razão do nervosismo. Seria besta? Será que ele aceitaria?

Chegou minha vez. Ele olhou pra mim e sorriu. Respirei fundo e comecei a falar. Contei rapidamente sobre “Oceano” e agradeci por ele ter me feito companhia durante o pior do problema no olho. Ele perguntou: “você gostou do livro?”. Eu disse ter adorado e mencionei a parte favorita. Ele agradeceu. Então puxei o volume de “Filhos” e disse as palavras mais orgulhosas e certeiras da minha vida:

“Esse é meu primeiro romance, publicado há pouco no Brasil. Você o inspirou e me guiou nas horas difíceis”.

Ele não respondeu, demorei uns segundos para ver, por causa do tapa-olho. Ele parou de assinar o livro e estendeu a mão direita, em cumprimento. Retribuí a oferta, aí ele falou: “Congratulations, keep up. / Parabéns, continue assim. Quem sabe um dia eu aprendo um pouco de português e leio”. Ele leu rapidamente a dedicatória, sorriu novamente, entregou meus livros, agradeci e segui meu caminho.

Neil Gaiman ficou autografando até as 2:30 da madrugada. Eu voltei para casa com uma missão. Ele se arrependeu de não ter seguido o conselho de King. Eu vou aceitar o desafio e keep up.

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Fábio M. Barreto é jornalista, cineasta e autor da ficção científica “Filhos do Fim do Mundo” e agora tem uma missão: escrever, sempre.

badaf b feedPost originalmente publicado no Brainstorm #9
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