[AVISO: Contém spoilers menores]
“O Jogo da Imitação” é uma narrativa convencional sobre a trajetória de uma figura singular que, movida por genialidade e obsessão, foi capaz de alterar os rumos de um evento muito maior do que sua própria existência.
Dirigido por Morten Tyldun, autor do curioso “Hodejegerne” (ou “Headhunters”) e estreante em língua inglesa, o filme se estabelece no início dos anos 1950, quando o matemático Alan Turing (Benedict Cumberbatch) é levado a depor sob alegação de obscenidade ao ser visto com outro homem – a homossexualidade só seria descriminalizada no Reino Unido no fim da década seguinte. O depoimento feito a um policial conduz o espectador, por meio de um voice over não muito constante, a duas outras linhas do tempo: a Segunda Guerra Mundial e a infância do protagonista.
Distribuído em três tempos diferentes, o filme oferece uma série de elementos para que se trace um perfil bem composto do homem responsável por quebrar os antes considerados indecifráveis códigos da Enigma, máquina utilizada pelos alemães para comunicação em segredo durante o conflito. Contratado pelo estado britânico durante a guerra por sua habilidade em decifrar códigos, Turing desempenhou um papel fundamental para a vitória dos Aliados, sacramentada em 1945 – legado esse reafirmado várias vezes no decorrer da ação.
Ao se dedicar primordialmente a tratar do processo que levou à quebra das mensagens do Eixo, “O Jogo da Imitação” oferece uma ideia interessante de uma corrida contra o tempo que durou alguns anos. É essa união estranha de urgência e demora que dita o ritmo do filme e permite que Cumberbatch produza, com bastante elegância e traços de enorme maturidade, um amplo estudo de personagem.
O diretor Morten Tyldun e Benedict Cumberbatch no set
Sua obsessão pelo desenvolvimento de uma máquina capaz de compreender qualquer código – precursora da ciência da computação como a conhecemos – é dimensionada com habilidade, e sua ambição, arrogância e inabilidade para o trato social, apesar de parecerem características mais óbvias de uma figura genial, funcionam bem em contraste com seus colegas no projeto – sobretudo Joan (Keira Knightley) e Hugh (Matthew Goode), que se destacam em meio a tipos mais caricatos e de composição menos inspirada, como John (Allen Leech).
Além disso, embora de início a sexualidade de Turing pareça um subtema ou um simples gancho para ligar sua prisão aos eventos do passado, o aspecto pessoal do personagem é também central ao filme, sobretudo quando a trama se encaminha para uma resolução – em trechos que dão a ele a oportunidade de se expressar brilhantemente com os olhos, as mãos e uma entonação de voz comovente. Por essa razão, é incômodo que se volte tanta atenção para os pormenores do processo, ainda que um ângulo dependa do outro.
A burocracia das idas e vindas do protagonista com os superiores durante a guerra, em especial o comandante Denniston (Charles Dance), motivada pela aparente falta de resultados do projeto chefiado por ele, e os toques de mistério e tensão provocados pelo interrogatório, já nos anos 50, servem menos para explicar o peso dos acontecimentos nas angústias do personagem e mais para dispersar o longa de seu principal objeto de interesse.
A união estranha de urgência e demora que dita o ritmo do filme, permite que Cumberbatch produza, com bastante elegância e traços de enorme maturidade, um amplo estudo de personagem
Existe certa “gordura” na trama, pontuada por desnecessárias sequências de bombardeios e explosões genéricas aqui e ali, as quais nada representam além de meras distrações, uma vez que os custos de uma eventual falha e a ansiedade dos tempos de guerra já haviam sido apresentados de maneira clara desde a premissa.
Acima destes elementos falhos, importam verdadeiramente as implicações morais das decisões tomadas por Alan e seus colegas e seu conflito pessoal. Não por acaso, derivam deste par de componentes dois dos momentos mais convincentes e emocionalmente impactantes de todo o filme: a escolha entre impedir ou não o afundamento de um navio britânico e uma discussão com Jane em uma situação de crise.
Nesse sentido, é interessante notar que o roteiro de Graham Moore (baseado no livro de Andrew Hodges) possui uma clara intenção de discurso progressista, em certa medida apontando o dedo para o ridículo da homofobia e do machismo corrente na época. De modo natural, a trama passa a oferecer mais espaço e importância para sua principal personagem feminina, uma figura forte e decisiva, que retorna para sinalizar determinados choques e soluções.
A sensação final, graças à direção automática e vícios narrativos, é de que tanto Turing quanto Cumberbatch são muito maiores do que “O Jogo da Imitação” faz parecer
O problema, aqui, é que esse discurso se sustenta em bases convencionais, frutos de uma estrutura que segue padrões quadrados, incapazes de levar a discussão adiante ou além de um nível primário de análise. Tyldum filma tudo de maneira pouco cinematográfica, dando ênfase à repetição exaustiva de frases um tanto cafonas sobre esperança (“Às vezes, são as pessoas de quem menos esperamos que fazem coisas que ninguém poderia esperar”*) e estabelecendo paralelos mecânicos, genéricos e nada inspirados entre a infância do garoto, que se alonga em excesso, e sua situação durante e após a guerra.
É também de se estranhar que o diretor recorra ao fechamento mais banal possível para essa trajetória, um letreiro no fim que anuncia o destino fatídico do protagonista, sem que articule com maior serenidade os elos entre seu legado extremamente positivo e sua condenação pessoal ao fracasso.
A sensação final, graças à direção automática de sequências-chave e a insistência em certos vícios narrativos, é de que tanto Turing quanto Cumberbatch são muito maiores do que “O Jogo da Imitação” faz parecer, a despeito das importantes questões por ele levantadas. A intenção de fazer jus ao legado de um dos personagens mais relevantes do século 20, até outrora relegado a um misto de sigilo e esquecimento, é clara, respeitosa e carregada de qualidades – mas merecia ser contada com maior desenvoltura.
*Tradução livre para “Sometimes it is the people who no one imagines anything of who do things that no one can imagine”.
Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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