No epílogo de suas memórias, lançadas em 1994, Roberto Campos escreveu que o Brasil precisava de uma nova agenda e uma nova visão. “No plano econômico, precisamos de uma nova semiótica, como antídoto ao veneno dos ismos. Essa semiótica consistiria na adoção de um novo sufixo – ação – que sinalizaria uma ideologia modernizante. Desinflação, desregulamentação, privatização, desgravação fiscal e integração no mercado internacional, eis a litania do novo credo!”, afirmou Campos, que completaria 100 anos em 17 de abril, sugerindo ideias que havia martelado ao longo de boa parte da vida. No plano social, o economista, que foi ministro do Planejamento, presidente do BNDE e embaixador em Washington e em Londres, defendeu concentração de recursos “na melhoria do capital humano”.
Roberto Campos que completaria 100 anos em 17 de abril é um pensador que precisa ser revisitado Share on XA agenda descrita há quase 23 anos por Campos, quando o Plano Real era lançado, continua em grande parte atual, especialmente depois do malogro das políticas intervencionistas e protecionistas promovidas pela ex-presidente Dilma Rousseff. Parte do receituário de Campos em suas memórias foi adotada na segunda metade dos anos 90 e na primeira metade dos anos 2000, embora muitas medidas tenham deixado de ser prioridade já no governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Para o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga, as ideias de Campos são importantes para o Brasil “essencialmente por serem liberais, em contraste com um pensamento dominante mais intervencionista”. O discurso liberal era apresentado de “maneira clara e provocativa”, diz Arminio, sócio da Gávea Investimentos. “Ele procurava mostrar as consequências menos óbvias e negativas de políticas bem-intencionadas.”
Na visão de Arminio, Roberto Campos sempre foi um economista de “inspiração liberal clássica”, que enxergou no Brasil um “Estado desenhado de modo ineficaz e até perigoso”. “Infelizmente, com o petrolão, mais do que nunca ficou claro que ele tinha absoluta razão. Isso não foi um acidente”, avalia Arminio. “Campos entendia a corrupção como algo intrinsecamente ligado a um Estado repleto de oportunidades para prestar favores e, de certo modo, cobrar por isso.” Para ilustrar a atualidade das ideias de Campos, “não é preciso ir muito longe”, diz Arminio. Basta lembrar, diz, “os custos do protecionismo (a baixa produtividade), das estatais (a baixa produtividade e a corrupção), das políticas discricionárias (incerteza, baixo investimento), do viés anticredor (pouco crédito, juros altos)”.
Também ex-presidente do BC, Gustavo Franco diz que Campos atuou “num espaço dificílimo, o de introduzir e adaptar ideias liberais para o ambiente brasileiro”. Segundo Franco, Campos fazia isso “sem nenhuma ingenuidade”, conhecendo bem o modo de o Brasil funcionar. “Isso o distingue de outros liberais de raiz, por assim dizer, que têm um olhar mais ingênuo, ou mesmo tolo, sobre a herança cultural brasileira e do que é possível fazer de reformas econômicas no país”, diz ele, sócio da Rio Bravo Investimentos.
O economista Eduardo Giannetti tem uma visão menos positiva de Campos. “Ele foi mais um homem público e militante na guerra das ideias do que propriamente um cientista, um desbravador do conhecimento, um pesquisador”, diz Giannetti, para quem a melhor palavra para definir Campos é “pregador”. “Ele acreditou ter encontrado uma verdade, que é fundamentalmente o pensamento da escola austríaca, e se tornou um propagandista full time.” Friedrich Hayek (1899-1992), Nobel de Economia de 1974, e Ludwig von Mises (1881-1973), dois dos principais nomes da escola austríaca, eram admirados por Campos, que também gostava de Karl Popper (1902-1994), segundo Giannetti.
Giannetti contrapõe Campos a Mario Henrique Simonsen (1935-1997), professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e ex-ministro da Fazenda no governo Geisel (1974 a 1979). “Simonsen tinha um perfil de cientista. Era alguém que dominava profundamente a teoria econômica, mas também o instrumental analítico da economia, e estava disposto a abrir com a descoberta e o avanço do conhecimento”, diz. “Você começa a ler um texto de Simonsen e não sabe o que pode ocorrer. Já Campos era altamente previsível. Os seus textos são cartas marcadas. Ele usou e abusou de uma certa retórica que envelheceu mal.”
Campos teve atuação de grande importância como homem público, com participação em diversos governos. O auge de sua trajetória foi na administração Castello Branco (1964 a 1967), quando ocupou o ministério do Planejamento no primeiro governo da ditadura militar. Ao lado do então ministro da Fazenda, Otávio Gouveia de Bulhões (1906-1990), Campos foi um dos arquitetos do Plano de Ação de Emergência do Governo (PAEG), programa que combateu a inflação e promoveu uma série de reformas econômicas e institucionais, preparando o terreno para o crescimento acelerado do período entre 1968 e 1974.
Sem o PAEG, não teria havido a expansão robusta do milagre, dizem Arminio e Franco. “Do ponto de vista econômico, foram feitas todas as reformas que logo após se tornariam os motivos para o sucesso do milagre”, avalia Franco, enfatizando a amplitude do programa, com medidas na área fiscal, monetária, do mercado de capitais, entre outras. “Ali, foi barba, cabelo e bigode.” “O PAEG foi o mais coerente e abrangente plano de desenvolvimento implantado no Brasil desde o Descobrimento”, segundo o economista Renato Fragelli, da Escola de Pós-Graduação em Economia (EPGE) da FGV (leia entrevista nas págs. 8 e 9).
Economistas não ortodoxos costumam destacar o impacto das políticas austeras do PAEG sobre a economia. No livro “Inflação e Recessão” (1984), o ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira e o ex-secretário da Fazenda paulista Yoshiaki Nakano dizem que “as baixas taxa de crescimento da renda verificadas no Brasil em 1964, 1965 e 1966 estão (…) muito menos relacionadas com as altas taxas de inflação (…) desses anos, e muito mais com a política anti-inflacionária então executada, baseada na redução forçada dos salários reais e em uma política monetária e fiscal restritiva”.
Roberto Campos enxergou no Brasil “um Estado desenhado de modo ineficaz e até perigoso”, segundo Arminio Fraga
Campos ajudou na criação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE, que mais tarde ganharia o S, de Social), no segundo governo de Getulio Vargas, em 1952, instituição que viria a comandar em 1958 e 1959, no governo de Juscelino Kubitschek. Na administração JK, participou da formulação do Plano de Metas. A carreira no governo culminou no Planejamento. Para Franco, o fato de um economista como Campos, que não acreditava em intervenção estatal em larga escala, ter ocupado a pasta num governo militar “transformou os atos de planejamento em iniciativas inteligentes e limitadas”.
Ministro da Fazenda entre 1967 e 1974, sucessor de Bulhões, Antonio Delfim Netto destaca o pragmatismo de Campos. “Era um grande liberal quando estava fora do governo e um grande intervencionista quando estava no governo”, diz Delfim. Para o ex-ministro, “a orientação do Roberto era liberal, mas ele não tinha nenhum constrangimento de fazer a intervenção quando fosse necessário.”
Em artigo publicado por ocasião da morte de Roberto Campos, em 2001, o professor Luiz Gonzaga Belluzzo, da Unicamp, diz que o economista “foi um desenvolvimentista sem saber”. “Isso é o que diz a sua biografia de homem de Estado, a despeito de suas preferências intelectuais e ideológicas. Entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o começo dos anos 1950, participou de todos os empreendimentos e reconstruções institucionais que alicerçaram o surto desenvolvimentista.”
Delfim diz que o PAEG foi “uma revolução que colocou em ordem a economia”, abrindo espaço para o PIB avançar a taxas que chegaram a dois dígitos na época do “milagre”. A partir da gestão Costa e Silva (1967 a 1969), o novo ministro da Fazenda promoveu mudanças na política econômica. Segundo Delfim, o tempo de recolhimento de impostos foi ampliado, o que deu capital de giro para as empresas, e os juros reais foram reduzidos. “Fizemos também um ‘crawling peg’ [regime de minidesvalorizações da moeda], com uma taxa de câmbio competitiva”, diz. De acordo com ele, tudo isso estimulou o “espírito animal” dos empresários, num ambiente em que o país já estava preparado para uma expansão mais robusta, devido ao PAEG.
Também para Giannetti o momento mais importante da trajetória de Campos foi a sua passagem pelo governo Castello Branco. “As reformas econômicas foram muito importantes para colocar a casa em ordem.” Giannetti lembra, porém, da criação da correção monetária, um “monstro que fugiu do controle” dos idealizadores do plano, embora “a ideia inicial fosse interessante”. O objetivo, diz, era que o instrumento tivesse uso restrito, para corrigir contratos imobiliários, empréstimos de longo prazo e impostos. “Mas o que era para ser restrito a poucos contratos foi se disseminando e os prazos foram se encurtando.” Isso “ajudou a perpetuar o fenômeno inflacionário”, diz. Para Franco, o erro não foi a criação da correção monetária, mas o fato de o país ter convivido com uma taxa muito elevada inflação, que se acelerou nos anos 80.
Uma das reformas do PAEG foi logo desfeita no governo Costa e Silva: o BC independente. Em “A Lanterna na Popa”, Campos narra o episódio em que sugeriu ao futuro presidente a importância de negar os boatos de que pretendia trocar o presidente do BC, Dênio Nogueira, “pois a lei lhe dava mandato fixo, precisamente para garantir estabilidade e continuidade na política monetária”.
“O Bacen é o guardião da moeda”, disse Campos a Costa e Silva, que de imediato retrucou: “O guardião da moeda sou eu”. Segundo Campos, esse era um exemplo de que, no Brasil, há leis que “pegam” e leis “que não pegam”. “A que criou o Banco Central não pegou. É que o Banco Central, criado independente, tornou-se depois subserviente. De austero xerife passou a devasso emissor.” Nogueira foi substituído por Ruy Leme (1925-1997). Ao comentar o episódio, Delfim diz que, “o BC não estava de acordo com a política que nós estávamos tomando”. “Tinha mudado o governo. A ideia [do BC independente] é que o presidente [do BC] é nomeado, e isso é sagrado. Bom, isso é um ponto de vista”, diz. De acordo com Delfim, nos anos seguintes a inflação chegou a cair mais e o crescimento se acelerou.
Nascido em Cuiabá, Campos foi seminarista. Em 1939, ingressou no Itamaraty. Em 1944, então terceiro secretário da embaixada em Washington, participou da conferência de Bretton Woods, em 1944, que criou o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. A delegação brasileira, liderada pelo ministro da Fazenda, Arthur de Souza Costa (1893-1957), tinha como destaque Eugênio Gudin (1886- 1986), um dos principais nomes do liberalismo no Brasil, que ocupou a pasta da Fazenda entre 1954 e 1955, no governo Café Filho.
“A delegação mais brilhante era, sem dúvida, a da Inglaterra, cujo chairman era nada menos que Lord Keynes”, relembra Campos, observando que, “como modesto secretário de embaixada”, só lhe cabia acompanhar “com fascinação” os debates. “Como Souza Costa era patrioticamente abstêmio em relação a línguas estrangeiras, a atuação principal, em nome do Brasil, cabia a Gudin. (…) Além da flexibilidade linguística, desfrutava Gudin de excelente capacidade expositiva e invejável erudição em problemas cambiais e monetários”, narra Campos, em suas memórias.
Mais tarde, Campos foi embaixador nos EUA. Ficou em Washington entre outubro de 1961 e janeiro de 1964, quando acompanhou de perto o governo de John Kennedy, classificado em “A Lanterna na Popa” como “um dos grandes homens” que conheceu, ao lado do francês Charles De Gaulle, do alemão Konrad Adenauer e da inglesa Margaret Thatcher.
Ao falar dos assuntos tratados por Campos, Arminio ressalta também os ataques às estatais, “aos sauros todos”. Defensor ferrenho da privatização da Petrobras, o economista apelidou a empresa de “Petrossauro”. “Sempre achei que o México e o Brasil somente transporiam sua fase pré-lógica e fetichista quando privatizassem suas empresas estatais de petróleo – a Pemex e a Petrossauro”, escreveu Campos em artigo publicado na “Folha de S. Paulo” em 1998. “Monopolizaram o petróleo a título de ‘riqueza estratégica’. Mas ele não é nem uma coisa nem outra. Se petróleo fosse riqueza, o Japão seria pobre, e a Rússia, opulenta. Se produzi-lo desse poder estratégico, a Alemanha seria mais débil que o Iraque.” As opiniões de Campos lhe valeram ataques da esquerda. “Passei a ser apelidado de Bob Fields e acoimado de ‘entreguista’ e ‘vendido às multinacionais'”, escreveu em “A Lanterna na Popa”.
A participação de Campos em um governo da ditadura também lhe rendeu críticas. Em “Réquiem para um Estadista”, que aparece na coletânea “Do Outro Lado da Cerca” (1967), e textos publicados em “O Globo” e “O Estado de S. Paulo”, ele cobre Castello Branco de elogios. “Foi um grande presidente. Talvez o maior de todos. Porque lhe coube uma herança de caos, uma safra de impasses, a travessia de desertos impraticáveis, numa nação que parecia ter-se esquecido de que a busca de direitos exige a aceitação de deveres.” Em suas memórias, faz críticas à gestão de Costa e Silva, na qual houve mudanças na política econômica e o endurecimento do regime, especialmente a partir de dezembro de 1968, quando foi baixado o AI-5. Entre 1975 e 1982, assumiu a embaixada em Londres.
No artigo escrito em 2001, Belluzzo diz que, “em matéria de (mau) humor, Campos exagerou na dose quando apoiou o golpe militar de 1964 e, no livro ‘Do Outro Lado da Cerca’, escreveu: ‘Sobre as eleições diretas no Brasil, a melhor coisa que se pode dizer é que funcionaram bem enquanto não existiram'”.
Em 1973, Campos e Gudin enviaram cartas a Paul Samuelson (1915-2009), Nobel de Economia em 1970, em esforço para convencer o americano a permitir alterações na versão brasileira da nona edição de seu livro “Economics”, que citava o Brasil na seção “Fascismo”. Segundo o site “Arquivos da Ditadura”, que traz documentos reunidos pelo jornalista Elio Gaspari, o país aparecia ao lado de “outras ditaduras (como a Itália de Mussolini e a Alemanha de Hitler), e descredenciava o sucesso econômico desses regimes, considerando-o de ‘curto prazo'”. A citação desagradara ao dono da editora Agir, Cândido Guinle de Paula Machado (1918-2000), que editava o livro no Brasil desde 1952. O editor escreveu uma carta à editora americana de Samuelson, manifestando o seu descontentamento com a associação entre Brasil e fascismo. Em outra frente, mobilizou intelectuais para convencer o autor a reescrever o trecho, segundo o site.
Em sua carta, Campos classifica o regime brasileiro como “autoritarismo consentido”. Ao comentar as “denúncias de abuso dos direitos humanos”, afirmou que “seria injusto confundir acidentes de brutalidade policial com uma política deliberada de repressão policial e punições físicas”. As cartas de Gudin e Campos chegaram a Samuelson quando este já havia concordado em fazer as mudanças.
“Independentemente da propriedade semântica do termo ‘fascista’ aplicado por Samuelson ao Brasil, a carta de Campos revela de forma inequívoca o seu profundo comprometimento com o regime ditatorial brasileiro em seu pior momento”, diz Giannetti. “É deplorável constatar como Campos ignora e escamoteia na carta a gravidade da repressão política, da tortura e da censura à imprensa sistematicamente praticadas pelos militares. Uma página vexaminosa de sua trajetória.” Arminio Fraga, por sua vez, questiona a definição de Campos para o regime: “Autoritarismo, ok, mas consentido?”.
Campos teve também carreira no Congresso. Primeiro, como senador pelo Mato Grosso, elegendo-se em 1982 pelo PDS. Em 1985, votou no colégio eleitoral em Paulo Maluf, de seu partido, derrotado por Tancredo Neves (1910-1985), do PMDB. Em suas memórias, conta que havia expressado sua opção por Maluf em entrevista concedida em janeiro de 1984, por ser o candidato com a maior experiência administrativa e por considerá-lo um “autêntico privatista, num país oprimido por um Estado hipertrofiado e incompetente”.
Em 1990, elegeu-se deputado federal pelo PDS, mas pelo Rio de Janeiro. Em 1992, compareceu à votação do impeachment de Fernando Collor de Mello em cadeiras de rodas, por estar adoentado. Deu o primeiro voto a favor do impedimento do então presidente, em quem havia votado no segundo turno. No Senado, teve atuação de destaque contra a reserva de mercado na informática. Saiu derrotado, com a aprovação da lei em outubro de 1984. “Se tivesse que fazer uma autocrítica, (…) diria que fui antes um pregador de ideias do que um operador eficaz, melhor na formulação do que na articulação de políticas – possuído talvez demais da ‘índole da controvérsia’, e, de menos, da ‘capacidade de acomodação’ necessária ao exercício do poder”, escreveu, ao fazer um balanço de sua trajetória.
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Matéria do Valor escrita por Sergio Lamucci.