Não é segredo que o público jovem determina os rumos do cinema comercial. Desde a explosão do “Verão Americano” com as filas quilométricas para “Guerra nas Estrelas” e “Tubarão”, a mentalidade de agradar o principal cliente tem norteado as decisões de Hollywood e outros núcleos cinematográficos. As adaptações literárias, que já eram numerosas no final da década de 70 – uma realidade do mercado, não uma tendência como muitos apontam, aliás – foram um pouco apagadas por um grande surto criativo nas duas décadas seguintes, mas sempre estiveram por aí.
Foi preciso outro grande transformador cultural e comercial para virar a balança: “Harry Potter”. A porteira foi aberta pela razão mais óbvia: filmes com base de fãs pronta a ser explorada eram garantias de sucesso. “Crepúsculo” reforçou o modelo, assim como os livros que seguiram o mesmo caminho: “Jogos Vorazes” e, a mais nova estreia, “Divergente”. A chamada “crise criativa de Hollywood” não existe, pois, de fato, mascara o monstro do medo do fracasso. E nada como uma heroína pré-fabricada para salvar o dia.
Por conta disso, as grandes disputas da bilheteria trocaram “o filme mais surpreendente” pela “adaptação menos problemática”. Se bem feito, o longa-metragem em questão vai agradar aos fãs mais moderados (os radicais vão odiar de qualquer jeito, mesmo) e romper a barreira do nicho, arrecadando mais e se sustentando por mais tempo nas bilheterias. Caso contrário, desaparece rapidamente e sepulta eventuais continuações (quem lembra de “Coração de Tinta”, de Cornelia Funke? Um bom livro com execução questionável. Ou mesmo “A Bússola de Ouro”, o fracasso que matou a New Line?).
O diretor Neil Burger com a atriz Shailene Woodley
É bem nesse cenário que Bella Swan, e suas herdeiras, mudaram o jogo. Quando os livros mais ousados ou provocadores fracassaram, a história de amor adolescente impossível ou de revolta ao sistema opressor ganharam força e a fórmula mágica caiu nas graças dos produtores, do público e dos jovens escritores, que, prontamente, se prostituíram ideologicamente em troca da promessa de sucesso, fama e fortuna.
Tudo nisso é ruim? Não. Os estúdios encontraram a jogada de segurança para guia-los através da tempestade da mudança de modelo de negócios (que ainda está longe de ser concluída), das perdas causadas pelos downloads e o novo perfil de consumidor, que prefere ver o filme em casa e tem se afastado dos cinemas por diversas razões (preço, público problemático, filas, preguiça, comodismo e desinteresse puro e simples).
Logo, a proporção para cada “Ela” é de cinco “Jogos Vorazes”; e o produtor do “Ela” ainda entra na jogada com todo o receio do mundo, enquanto quem trabalha no outro lado sabe que vai poder explorar todo o licenciamento por meses a fio, tem um mínimo garantido de bilheteria e, inevitavelmente, vai ter uma estreia lotada. São dois exemplos extremos, mas que convivem no mesmo mercado, sendo produzidos pelas mesmas pessoas e disputando as mesmas salas de cinema.
As grandes disputas de bilheteria trocaram “o filme mais surpreendente” pela “adaptação menos problemática”
Também existe a outra conta: um sucesso comercial pode financiar até 10 filmes menores, que vão girar o catálogo do estúdio, manter o pessoal empregado e sustentar as finanças no longo prazo. Logo, eles são necessários e muito bem-vindos.
Mas qual o custo? Muito alto. Um dos maiores problemas é amplificar vozes sem conteúdo ou mensagens contraditórias geradas pela obrigatoriedade da fórmula mágica. As heroínas pré-fabricadas mostram que é preciso lutar, literalmente, até descobrir que cada garota é a única capaz de derrotar regimes autoritários, revolucionar sociedades e garantir a individualidade independente das consequências.
Claro, tudo isso se origina na mensagem válida da independência feminina e na, bem-vinda, mudança de paradigma social moderno e tais conceitos devem ser reforçados. Mas, de certa forma, isso se transformou numa desculpa para histórias ruins serem elevadas a dramas relevantes.
A mensagem se contradiz com as circunstâncias da criação da personagem, uma mera resposta comercial a um gênero que fez sucesso
Tris, a heroína de “Divergente”, é uma alusão clara à luta contra os rótulos, uma mulher capaz de encontrar seu próprio lugar na sociedade e disposta a tudo para não se conformar com imposições externas. Entretanto a mensagem se contradiz com as circunstâncias da criação da personagem, uma mera resposta comercial a um gênero que fez sucesso: adolescente feminina + sociedade autoritária + teste que vai definir seu futuro + habilidade especial + luta pela sobrevivência + papel fundamental na subversão do sistema.
É só inventar novas possibilidades para cada um desses moldes e a história se mantém. É a cópia da cópia da cópia. Talvez, tentar entender as razões sociais e a presença da força feminina seja ir além do que a proposta original sugere, o que só piora a análise e enfraquece a relevância da história.
Qual a lição de tanta “luta contra o governo e em prol da individualidade?” Estamos cercados por “comunistas bobos e feios”? E, se fazer parte de algum rótulo é tão ruim, por que as fãs andam todas juntas, vestem as mesmas roupas inspiradas nas personagens e repetem as mesmas frases de efeito? “Sou Divergente!”, ouvi uma garota dizendo com orgulho. Não, querida. Você é massa. Você e todas as outras.
A fórmula está pronta e significa algo bem ruim para roteiristas e autores criativos
Embora tenha uma direção com dois ou três bons momentos, “Divergente” é desinteressante até mesmo dentro de sua proposta. A personagem principal não se encaixa na sociedade, logo, deve ser exterminada. Há um golpe militar em andamento, para “salvar a sociedade”, que, aparentemente, se recuperou muito bem de uma guerra distante.
Se ser diferente é um problema tão grande no futuro proposto (e algo amplamente aceitada hoje), qual a razão de tudo isso? Continue sendo você mesma? Como se as novas gerações não soubessem o que querem e como querem.
As liberdades sociais, as milhares de carreiras que surgem com a inovação tecnológica e o acesso a informação faz isso por elas, permite que se encaixem onde quiserem ou vivam vidas distantes de grupos sem se privarem dos benefícios modernos. É tudo uma questão de opção.
“Divergente” fala um pouco disso, da responsabilidade na escolha e talvez seja seu único ponto positivo, mas que se dissipa em meio a tantos estereótipos, sacrifícios pouco dramáticos e uma sociedade que não dá ao espectador razões para torcer por sua continuidade ou lutar por sua destruição. Tudo tão artificial quanto os efeitos questionáveis, a trilha ineficaz e um romance que dói de tão previsível.
Nada disso, porém, impediu “Divergente” de abrir liderando as bilheterias norte-americanas e já acumula mais de US$ 125 milhões. A fórmula está pronta e significa algo bem ruim para roteiristas e autores criativos. Quer vender? Escolha um público, entregue algo de fácil digestão, faça de conta que está ensinando algo, mas, na verdade, massifique ainda mais. Não se esqueça da história de amor e de sugerir que TODOS os seus leitores/espectadores podem ser algo especial, único e mágico. A fortuna te espera. E a fila anda.
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Fábio M. Barreto gosta de bons autores, aprendeu muito com Alan Moore, se divertiu com J.K. Rowling, quer ver mais filmes de Chuck Palahniuk nos cinemas e sabe que seu próprio livro, Filhos do Fim do Mundo, não se encaixa na fórmula mágica!
Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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