O épico bíblico “Êxodo: Deuses e Reis” carrega problemas dele indissociáveis pela própria natureza e concepção do projeto. A origem dos atores contratados para os principais papéis e a decisão assumidamente etnocêntrica de escalar nomes de maior peso em vez de profissionais historicamente mais fiéis, próximos física/etnicamente aos personagens do segundo livro do Antigo Testamento gerou um questionamento moral público, que colocou Ridley Scott como principal alvo após declarações controversas – “não consigo financiar um filme desse orçamento, tendo que recorrer a reduções de impostos na Espanha, e dizer que meu protagonista é um Mohammad-de-tal de não-sei-onde”* -, de certo modo amenizadas por comentários mais sensatos de Christian Bale e Joel Edgerton.
Mesmo reconhecendo se tratar de um longa ficcional, da visão do autor sobre o texto, e colocando a discussão de lado ao analisar o filme em si, porém, parece claro que a presença de europeus, australianos e americanos brancos declamando frases em um inglês cheio de sotaque é, para dizer o mínimo, uma enorme fonte de distração. Há um contraste muito forte entre a imagem de figuras conhecidas fantasiadas de egípcios/hebreus e o apreço visual do restante do projeto, que pretende situar o espectador temporal e geograficamente naquele universo.
É preciso reconhecer que Scott pode ser criticado por dezenas de falhas relacionadas direta ou indiretamente ao seu ofício, mas jamais por falta de ambição
É preciso reconhecer que Scott pode ser criticado por dezenas de falhas relacionadas direta ou indiretamente ao seu ofício, mas jamais por falta de ambição. Após décadas variando entre sucessos absolutos e fracassos retumbantes, sua decisão de filmar a história de Moisés (interpretado por Bale) e seu povo, aliada à recorrência em tela de uma série de suas mais positivas marcas registradas, reafirma a ideia de que mais vale um cineasta de mãos pesadas – e ele o é – do que um maneta.
O já mencionado cuidado visual volta a impressionar pelo gigantismo após “O Conselheiro do Crime”, sua última obra como diretor, mais contida sob este aspecto, e também em meio a blockbusters que mais se assemelham a segmentos introdutórios de videogames, mesmo quando buscam se apropriar de uma estética tipicamente cinematográfica.
Ridley Scott no set
“Êxodo” é capaz de aliar com extrema naturalidade suas exímias criações digitais aos sets de filmagem e locações reais, principalmente em Andaluzia e nas Ilhas Canárias, algo fundamental para o processo de imersão da audiência e que permite que se economize em exposições sobre o enredo. Além disso, a câmera de Dariusz Wolski (que acompanha Scott desde “Prometheus”) passeia com habilidade pelos cômodos do palácio real, espaço que Ramsés (Edgerton) ocupa durante quase toda a projeção.
Nos planos mais abertos, apresenta cidades, vilarejos e paisagens naturais de maneira inspirada, ainda que haja pouco frescor na forma como os cenários bíblicos mais recorrentes são retratados – um problema que se percebe na falta de consistência das cores e tonalidades ao longo do filme e que se agrava nos momentos mais trágicos, quando se limita a fotografar pequenos focos de fogo e fumaça em meio à escuridão.
Quando observado de perto, entretanto, o caos é filmado com maior qualidade, sobretudo em sequências como a da batalha inicial, em que o diretor prova compreender o movimento como poucos de seus pares, alternando a velocidade de algumas cenas para sugerir a maior ou menor intensidade dos golpes e reforçar seu peso dramático. É um truque simples, que em outros tempos já rendeu a ele acusações enganadoras de ser um adepto do “estilo sem substância”.
“Êxodo” é capaz de aliar com extrema naturalidade suas exímias criações digitais aos sets de filmagem e locações reais, fundamental para o processo de imersão da audiência
A ideia parece falsa justamente porque se verifica, aqui, não apenas um zelo especial pela imagem, mas também a pretensão de uma discussão filosófica e espiritual que talvez faltasse ou falhasse, em menor ou maior grau, em alguns de seus épicos anteriores, nomeadamente “Cruzada” e “Gladiador”.
É evidente que tudo acontece dentro de uma moldura quadrada, sustentado em bases quase imutáveis e se contentando em jogar um jogo um tanto fácil de negociação de expectativas – como também faziam mestres como Cecil DeMille (“Os Dez Mandamentos”). Existe, porém, a sensação de um projeto narrativo maior, como se Scott compreendesse perfeitamente a escala e o escopo de seu filme e, dentro destes limites, assumisse determinados riscos e promovesse os questionamentos que julga pertinentes – sobre fé, paixão, esperança, liberdade etc, sem jamais assumir certezas.
Nesta temática, cabe notar elogiosamente a escolha de uma criança como a imagem divina definitiva cuja própria existência (em um filme exatamente sobre Sua influência) nunca é atestada, e a negação categórica de uma escala necessariamente evolutiva de civilização entre o tribal e o urbano, apresentada por Moisés em seu primeiro contato com Zípora (María Valverde).
Nesse sentido, é interessante perceber outros dois aspectos fundamentais da obra: a atenção à humanidade, que na maior parte do tempo não é sufocada por artifícios fáceis justificados por um poder superior, e o senso de coletivismo que a permeia, que salvo raros momentos apela para monólogos imponentes. É de se elogiar ainda que o filme adote um tom grave e sóbrio, mas não histriônico ou rendido à recente onda de cinismo que atinge as adaptações de maior escala de Hollywood.
Até mesmo o ritmo assumido pela narrativa deriva da segurança do cineasta em articular suas ideias dentro do que ele admite ser um produto. O longa é extenso, mas só se torna arrastado quando decide, de forma consciente, parar com o intuito de refletir sobre os tais homens e deuses de seu subtítulo.
O principal exemplo é a transição entre a guerra de atrito promovida por Moisés e o surgimento das dez pragas, quando o foco varia com calma e lentidão entre o planejamento do líder hebreu, a reação do rei egípcio e a manifestação divina. Talvez essa pausa seja a razão pela qual a dezena de pestes funcione e flua melhor do que os mandamentos, apressados e comprimidos nos minutos finais.
O espetáculo de Ridley Scott se ancora na precisão técnica e estética para articular mais dúvidas do que certezas
É precisamente no terceiro ato que o gigantismo cobra seu preço, trazendo um clímax de soluções menos imaginativas do que os momentos que o antecedem e dando a falsa impressão de que aquela condução arrastada era apenas uma estratégia para inflar o embate derradeiro, não um recurso para promover elementos paralelos à trama principal.
A centralidade e o foco excessivo do roteiro na disputa entre irmãos, já na fase de resolução do longa, também gera impacto nas atuações, uma vez que os coadjuvantes são subutilizados de maneira unânime – a Tuya de Sigourney Weaver, por exemplo, é praticamente invisível.
Ainda assim, o projeto de Ridley Scott não parece depender dessas figuras laterais. O espetáculo se ancora na precisão técnica e estética para articular mais dúvidas do que certezas – da pertença de seu protagonista ao local onde viveu à abertura do Mar Vermelho. Mesmo que não haja uma resposta verdadeira, aqui as perguntas parecem suficientes.
*Tradução livre para: “I can’t mount a film of this budget, where I have to rely on tax rebates in Spain, and say that my lead actor is Mohammad so-and-so from such-and-such”.
Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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