[AVISO: Contém spoilers menores]
Os créditos iniciais de “Homens, Mulheres e Filhos” trazem uma imagem distante tanto de sua própria ambientação quanto da filmografia de seu diretor, Jason Reitman. Nos primeiros minutos de projeção, a sonda Voyager passeia pelo espaço embalada, antes, por uma confusão de sons, e a seguir, por uma narração que descreve sua história: lançada em 1977, ela transmite, a partir de um disco de cobre e ouro, faixas de áudio com vestígios da civilização humana – saudações nas mais variadas línguas, obras de Mozart e Chuck Berry, trechos de música étnica etc.
A voz que descreve sua trajetória anuncia que, no momento em que a sonda deixava o Sistema Solar, no início da segunda década do século 21, algo acontecia na Terra. Somos apresentados, então, ao grupo de figuras que será acompanhado pelo restante da projeção.
Reitman é acostumado a sequências de abertura elaboradas, e aqui aposta na missão da Voyager e em “Pálido Ponto Azul”, de Carl Sagan, como pontos de partida para sua observação da influência da tecnologia na vida de seus diversos personagens. A tese, apresentada de imediato por Don (Adam Sandler) e aparentemente compartilhada pelo restante do elenco, espalhado em algumas tramas menores, é de que “o cérebro é [apenas] um substituto inferior da internet” – e de tudo o que ela representa.
Se a visão do longa sobre tecnologia incomoda, a forma como seus outros grandes temas são tratados é ainda mais irregular
A partir daí, há uma tentativa clara de localizar o filme como algo pertencente e inevitavelmente associado a este momento histórico. A menção aos atentados de 11 de setembro de 2001, por exemplo, é acompanhada pela constatação de que os personagens não tinham celulares na época, sinal de um distanciamento temporal bastante significativo, o qual também é notado, entre outros momentos, quando Tim (Ansel Elgort) percebe que só tem notícias da mãe, que vive em outro estado, pelo Facebook.
Jason Reitman no set
Esse isolamento no tempo funciona em termos, sobretudo pelos engenhosos (mesmo que óbvios) recursos visuais, que projetam na tela páginas de redes sociais quando pessoas em cena as acessam, mas nunca flui. É sempre pontual e sustentado, no grande espectro, por pré-concepções descabidas, incompatíveis com qualquer reflexão mais apurada sobre tecnologia e cotidiano, e generalizações simplistas – o momento em que uma briga ocorre e todos ao redor começam a filmar com seus celulares é exemplo.
Se a visão do longa sobre tecnologia incomoda, a forma como seus outros grandes temas são tratados é ainda mais irregular. Embora Reitman – baseado no romance de Chad Kultgen – não pareça endossar determinados discursos e posições, seu retrato de tópicos como (in)fidelidade e vida adulta é quase desastroso.
Quando adentra o terreno do adultério, o longa revela seu lado mais errático, como se igualasse “online dating”e “infidelidade”, tratando a tecnologia como causa evidente da traição, e não como um possível (mas não necessário) facilitador para que ela ocorra. É ainda o mais previsível e esquemático dos núcleos, reduzindo à desimportância seus personagens justamente pela incapacidade de provocar uma discussão razoável sobre o assunto em questão.
Crítica semelhante, mas um pouco menos severa, pode ser feita à abordagem da vida adulta como sinônimo de frustração, não-amadurecimento e/ou falência de relações amorosas. Ainda que encontre ecos em trabalhos anteriores do cineasta, sobretudo “Amor Sem Escalas” e “Jovens Adultos”, sendo tratada ora com leveza, ora com cinismo, essa posição é trabalhada aqui sem maiores implicações para a trama. Seus personagens adultos são assim, de uma forma ou outra fracassados, mas dessa característica nada deriva.
Embora tenha bons valores em mãos, Reitman não contrasta personalidades opostas. Figuras tão diferentes acabam resumidas a uma característica: divorciados
É uma pena, portanto, que o filme se prenda tanto a eles e por vezes relegue ao segundo plano seus tipos jovens. A primeira interação romântico-sexual entre Hannah (Olivia Crocicchia) e Chris (Travis Tope), ambos pensando no que dizer/digitar (e errando ao fazê-lo), é inspirada e bem equilibrada: ela surge, é interrompida e retorna sempre como símbolo da própria natureza daquela relação, motivada por interesses similares na prática, mas distintos em origem e condução.
A quase-confissão de Tim a Brandy (Kaitlyn Dever) por mensagem também merece destaque por ser um dos momentos mais competentes do longa, justamente pelo paradoxo entre o que ele digita (“Eu não tenho mais medo [de dizer o que sinto]”) e a forma como age (apagando o texto, que dá lugar a algo banal, pelo medo de se abrir e o temor de ser rejeitado).
Embora tenha bons valores em mãos, Reitman praticamente não contrasta personalidades opostas, e até mesmo figuras tão diferentes como Kent (Dean Morris) e Donna (Judy Greer) acabam resumidas a uma característica: no caso, divorciados. Possivelmente o principal casal da trama, Tim e Brandy sofrem do mesmo mal. Ele, o garoto que rejeita convenções e seu “caminho natural”, se junta a ela, a garota que tem seu acesso a este caminho negado, bloqueado pela mãe. Ambos são, em síntese, figuras perdidas, outsiders, e jamais passam disso.
A despeito de alguns lampejos de bom texto, “Homens, Mulheres e Filhos” não passa de uma extrapolação desnecessária de seus minutos finais
São seres disfuncionais como todos os outros: a mãe que sexualiza a própria filha em função de sua frustração anos antes, a garota obcecada por dietas, o rapaz popular que não quer ser visto com a menina impopular etc. Todos eles agem como meros dispositivos, como retratos-falados que não passam da superfície e nada têm a dizer.
Ainda, é estranho que suas melhores interações – entre os jovens – pareçam independentes da internet ou ao menos verdadeiras para qualquer época, tornando desnecessário aquele drástico isolamento temporal, e que as demais – entre os adultos – soem falsas quando associadas à internet e aos tais tempos recentes.
Não significa que Reitman seja condescendente com seus discursos e ações absurdas, mas não cabe negar que o tom assumido pelo filme seja tão obtuso quanto seus personagens. De certa forma, a despeito de alguns lampejos de bom texto, como o jogo de Helen (Rosemarie DeWitt) com os termos “gaze/contemplar”, “sag/ceder” e “ter um affair”, “Homens, Mulheres e Filhos” não passa de uma extrapolação desnecessária de seus minutos finais, quando surge em tela uma espécie de filme-síntese, um clipe de curta-duração. Ali, a sobreposição entre o texto de Sagan (recorrente ao longo da história) e a trama, com todos seus núcleos e sub-tramas, funciona com uma naturalidade que inexiste nas duas horas anteriores.
Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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