Mudanças de paradigma fazem parte da evolução humana. Seja na sociedade, na política ou nas corporações, elas acontecem de acordo com estímulos externos. Um dos maiores casos recentes é a Disney.
Depois de décadas definindo os sonhos de meninas ao redor do mundo, a companhia percebeu que aquela definição clássica de amor verdadeiro e irrevogável começou a cair por terra por conta dos desenvolvimentos sociais e, para manter a liderança no campo, organizou mudanças.
Se analisarmos os últimos dez filmes de sucesso da Disney e estrelados por garotas, animados ou não, um tema se revela: o rito de passagem agora é feminino e as meninas se transformam em mulheres poderosas nas telas. Mulan, Alice, Rapunzel e Elsa agora ganham uma nova, e definitiva, aliada nessa empreitada: Malévola.
Com a estreia de “Malévola” (Maleficent), a Disney completa a transição da princesa à espera do príncipe encantado para a mulher que não pensa duas vezes em defender seus objetivos. “Frozen – Uma Aventura Congelante” já deixava claro esse direcionamento ao ignorar o formato do “amor como solução” para o grande problema e terminar com Elsa independente e solteira.
Novamente sob a pena de Lisa Woolverton (“O Rei Leão”, “A Bela e a Fera”), que também escreveu a nova versão de “Alice no País das Maravilhas”, a história da Bela Adormecida é recontada, ampliada e reinventada. Muito disso surgiu do comando de John Lasseter, que decretou a “Era da Reimaginação” dos clássicos logo que assumiu o controle criativo da Disney. Entretanto, Malévola vai além das predecessoras ao redefinir o conceito de “amor verdadeiro”. Os estereótipos caíram, agora é a vez da mistura entre individualidade e relações construídas à base de experiências reais.
A história aceita a magia como fator cotidiano no universo da princesa Aurora e faz bom uso de seus elementos e efeitos em todos à sua volta, embora isso seja apenas o pano de fundo. De forma simples, “Malévola” trata de amor. Tanto da ausência quanto da abundância, e as consequências de ambos.
No meio de tudo isso está Angelina Jolie, num visual deslumbrante e em atuação certeira. Ela garantiu a força nos dois momentos mais definitivos da personagem ao longo do filme e permitiu que o conto infantil fosse muito além da esfera infantil e tivesse ramificações para parcela adulta da plateia. Tudo gira em torno de Jolie e de sua personagem, que se divide entre vilã e heroína em diversos momentos da trama.
Toda essa redefinição do amor é feita em estágios: paixão, envolvimento, confiança, traição, redescoberta. E não faltam camadas de entendimento no roteiro, que não foge a grandes aflições das mulheres, como, por exemplo, o estupro. Numa das cenas mais pesadas da trama, algo é tomado de forma violenta e definitiva.
Elle Fanning e o diretor Robert Stromberg
A dor da traição se mistura ao trauma físico e suas sequelas, que são carregadas ao longo da trama. Talvez, essa sequência se torne tão emblemática no universo Disney quanto a morte da mãe de Bambi tamanha é sua relevância social e inserção num conto acessível a milhares de crianças.
Se a dor gera muita coisa, a descoberta da própria identidade contrapõe a história e catapulta grandes reviravoltas dramáticas, ações grandiosas e escolhas capazes de inspirar gerações. Claro, o conceito primário é simples e até didático, mas vai além disso.
Acompanhar a trajetória de Malévola é observar os altos e baixos da vida de muitas garotas vítimas de abuso ou abandono; assim como daquelas que, mesmo não afetadas fisicamente, precisam enfrentar suas próprias jornadas transformadoras em busca de liberdade, respeito e independência.
Longe do discurso feminista radical, é preciso reconhecer essas mazelas atuais e, da maneira que for possível, mostrar o caminho. Filmes como “Malévola” fazem isso e tem seu valor. Escapar das imposições é possível? Claro, mas, assim como qualquer pessoa disposta a escapar de injustiças sociais, há sempre um preço a ser pago.
“Malévola” pode ter declarado guerra à opressão, mas a Disney e tantos outros, declararam guerra aos arquétipos clássicos
Os dois lados de “Malévola” pagam caro pelos erros. Um é amaldiçoado pela loucura e paranoia; o outro pela obstinação sombria. Em boa parte do tempo, fica claro se tratar de uma batalha sem vencedores ou benefícios. Até o momento da escolha, quando um catalizador-chave é colocado em jogo e cada um dos lados precisa reagir a ele. Eis que a verdadeira índole de cada um surge e a bondade vence, afinal, ainda estamos falando de um filme da Disney.
Inegável não atribuir a essa “reimaginação” de “A Bela Adormecida” raízes fortes em Wicked, que transformou a percepção sobre a Bruxa Má do Leste, de “O Mágico de Oz” e se tornou um dos musicais mais assistidos da Broadway. Esse movimento quebra um pouco a dicotomia dos clássicos situados na Europa Medial e lhes insere nesse mundo cinza e cheio de leituras alternativas do qual a literatura moderna, especialmente, se alimenta.
Malévola pode ter declarado guerra à opressão, mas a Disney e tantos outros, declararam guerra aos arquétipos clássicos. John Campbell os define como fundamentais para qualquer civilização. Quem estará certo?
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Fábio M. Barreto é cineasta, autor de “Filhos do Fim do Mundo” e produz o canal “Barreto Unlimited”, no YouTube.
Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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