A América existe e persiste por causa de seus heróis. Lincoln, os responsáveis pela independência, os milhares de soldados perdidos em tantas guerras, o sujeito capaz de se sacrificar pelo ideal primordial do país: a liberdade. Ser herói é algo simples e de fácil alcance; não é preciso se tornar um empresário de sucesso ou inventar algo complicado, basta uma ação e pronto.
Um remake piorado de uma trilogia que redefiniu os conceitos do cinema de ficção científica
A América adora seus heróis; tanto que lhes deu superpoderes. E os transformou em ideias capazes de eternizar esses valores. Nenhum deles faz isso melhor que o Super-Homem. Especialmente em momentos de dúvida e reafirmação é ele quem sai em defesa de um povo dividido e uma indústria em busca da reinvenção. Assim surge “O Homem de Aço”, sem cueca por cima da calça, mas com a maior responsabilidade da longa trajetória cinematográfica.
Zack Snyder deve ter respondido a essa pergunta milhares de vezes e, a exemplo do que disse sobre os paralelismos políticos de “300”, deve ter dito se tratar apenas de um filme de superherói. Mas o Super-Homem nunca foi tão político como em “O Homem de Aço”; político, não partidário.
O roteiro de David S. Goyer bate constantemente em duas teclas: questionamento da função do indivíduo na sociedade e no mundo, e o que define a América moderna. Até por questões de nome, e de carga patriótica, o Capitão América deveria ser convocado numa hora dessas, entretanto, Steve Rogers é suspeito. Ele veste a camisa por ser parte da identidade norte-americana, ele não sabe ser outra coisa, é fruto de séculos de doutrinação. Ele não pode ser outra coisa.
Henry Cavill e Zack Snyder no set
Clark Kent pode. Clark Kent pode subjulgar o mundo todo e não o faz justamente por optar pelo pacote oferecido pelos Estados Unidos (inicialmente), se mostra um ser superior e faz de tudo – inclusive dar a vida – para defender esses ideais. Ele promove um tipo de ligação direta com os fundadores da nação, um imigrante em busca de uma segunda chance. Para ele, tudo isso vale a pena, nós valemos a pena, acreditar no conceito da democracia e etc é algo digno. Tanto é que, recentemente, ele causou polêmica ao se colocar contra os norte-americanos numa disputa humanitária (mostrando a evolução histórica do personagem). Bem, isso é como nós, estrangeiros, vemos. Para os norte-americanos, a coisa é diferente.
É aí que o questionamento do filme entra. O que fazer perante esse novo mundo com o iminente fim das guerras atuais dos Estados Unidos? Onde estão os inimigos? O governo assumiu ter sistemas de vigilância nacionais, o que fazer? Tudo isso foi assimilado. Mas, claro, ninguém espera a solução dos problemas sociais e partidários dos norte-americanos por conta de um blockbuster. Entretanto nada impede que os reflexos sejam sentidos, externados e, de certo modo, solucionados.
Todo mundo sabe como o Super-Homem vai reagir a tudo, mas os vilões sempre causam transtornos e testam os limites. A bola da vez é o General Zod (assim como em “Star Trek”, reaproveitado dos filmes clássicos, porém, de forma mais criativa). Mas também levanta a pergunta: quantas vezes veremos as mesmas histórias, com os mesmos vilões, sendo recontadas? No próximo filme, claro, será a vez de Lex Luthor!
Christopher Nolan e Zack Snyder
Zod é o velho sistema. Representa a queda de um povo, suas falhas e presunções. Ele é uma doença cujo objetivo é se espalhar e replicar os mesmos erros de uma civilização punida com a extinção. Em “O Homem de Aço” vemos a melhor retratação de Krypton já feita. Ponto.
O pouco visto na introdução do longa é suficiente para maravilhar e justificar o argumento, amplificado por armaduras fantásticas, combates ferozes e uma atuação marcante de Russell Crowe, que rivaliza o de Marlon Brando como Jor El. Krypton vale a pena, aliás, recomendo o romance “Os Últimos Dias de Krypton”, de Kevin J. Anderson, que entrevistaremos em breve! E também cria o maior problema estrutural e conceitual do filme.
Se Zod é a perpetuação do sistema, ou pior, a criação de uma versão mais radical e igualmente terrível do que destruiu Krypton (uma sociedade na qual todos os indivíduos são criados com funções sociais e profissionais pré-definidas no código genético), Zod tem apenas uma nota. Essa missão a cumprir. Ele é obstinado, ele quer transformar tudo ao redor em algo agradável a ele mesmo, cópias de sua visão, para acabar com o exílio ao qual foi condenado. Ele quer refazer tudo por acreditar ser capaz de ter mais discernimento que os antecessores, ele precisa cumprir seu propósito, ele precisa escapar da Matriz e, para isso, precisa destruir Neo. Oops.
Em “O Homem de Aço” vemos a melhor retratação de Krypton já feita. Ponto.
Já vimos essa história antes e a sensação de replay de “Matrix Revolutions” é gigantesca, tanto pelo argumento quanto pelo infindável combate aéreo entre Super-Homem e Zod. É destruição gratuita, sem a menor razão narrativa. Levanto uma questão: qual o ponto em se ter dois super-seres se esmurrando, destruindo prédios por quase dez minutos, se, todo mundo sabe, nada vai acontecer por se tratarem de forças iguais? Talvez o objetivo seja subjulgar o oponente.
Não importa, corte tudo isso e não faz falta. Claro, mas é isso que o público do blockbuster procura. A ação, a grande batalha, os efeitos especiais maravilhosos (nesse aspecto, Matrix parece brincadeira de criança). A única razão plausível para isso é descuido, puro e simples. Para completar, Morpheus e Locke estão no elenco!
Mas tudo isso para um remake piorado (por não trazer novidades) de uma trilogia que redefiniu os conceitos do cinema de ficção científica. Alias, “O Homem de Aço” tem tantas semelhanças assim justamente por se tratar de um filme de ficção científica, não um filme de super-heróis.
O maior fiasco é o roteiro em si, com situações, por falta de argumento melhor, bobas
Uma decisão interessante perante todo o pano de fundo da história de Clark Kent e seus paralelos com a política atual. Como toda grande ficção científica, ele usa a roupagem fantástica para expor aspectos reais. Isso sem contar referências diretas a “O Enigma de Outro Mundo”, “John Carter” e ao primeiro filme do Super-Homem.
Encontrar os limites é outro conceito. O ótimo Jonathan Kent de Kevin Costner faz isso por Clark, ao construir-lhe caráter e fazer de tudo para justificar seus próprios atos. Todos os personagens são testados, muitos falham. O maior fiasco foi o roteiro em si, com situações, por falta de argumento melhor, bobas; uma ou duas piadas boas queimadas no trailer e a constatação de que os kriptonianos são as pessoas inteligentes mais burras da galáxia. Qual o melhor jeito de punir o pior criminoso do planeta? Colocá-lo numa prisão que vai salvá-lo da tragédia planetária, claro!
“O Homem de Aço” traz nova roupagem visual, encontra um bom rosto em Henry Cavill e cria uma nova dinâmica para novos filmes por conta do segredo sobre a identidade de Clark Kent. É um bom blockbuster, mas não passa disso. Zack Snyder, e seu guru no projeto, Christopher Nolan, pedem que acreditamos no homem capaz de voar. Mas o fazem sem respeitar as regras do jogo.
“Superman – O Filme” continua ocupando o cargo de maior aventura do Super-Homem nos cinemas
Ficção científica precisa ser inovadora, exige arrojo e provocação. Nolan já decepcionou absurdamente a reciclar as próprias ideias no cada vez pior “O Cavaleiro das Trevas Ressurge” (nada mais que um remake preguiçoso do ótimo “O Cavaleiro das Trevas”) e escorregou novamente. Um dos melhores avanços da obra é a identidade do vôo do personagem. Tantas perguntas, tanto potencial e, em termos narrativos, tanta repetição.
Esse é o legado de “O Homem de Aço”, que segue o padrão Batman do Nolan para se estabelecer por conta própria, sem arriscar na construção de universo mais amplo como faz a Marvel. O sucesso de bilheteria é incontestável por conta da mistura da força do personagem com seus lados positivos. Entretanto é inevitável pensar nele sem aquela amarga sensação de que poderia ter sido tão melhor, tão inesquecível. “Superman – O Filme” continua ocupando o cargo de maior aventura do Super-Homem nos cinemas. Ajoelhem-se perante Richard Donner!
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Fábio M. Barreto é jornalista, autor da distopia “Filhos do Fim do Mundo” e quer morar em Krypton!
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Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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