[AVISO: Contém spoilers menores]
Em “O Abutre”, Jake Gyllenhaal – indicado ao Globo de Ouro 2015 pelo papel – vive Lou, um ladrão que, à procura de emprego, se insere como freelancer na cobertura jornalística de tragédias, tais como acidentes de carro, assaltos e homicídios.
Com uma câmera na mão e um rádio que capta as frequências da polícia instalado em seu carro, ele passa madrugadas correndo atrás de sangue como um vampiro, de modo a ser o primeiro a conseguir as imagens de violência que inundarão os noticiários do dia seguinte. Derivam desta premissa questões interessantes sob os mais variados aspectos, motivadas sobretudo pela onipresença do protagonista em cena e pela abertura de seu diretor e roteirista, Dan Gilroy, a debater certas ideias com maior atenção.
Logo em sua sequência de abertura, o filme se dedica a construir uma iconografia própria do ambiente em que se situa, do palco da trama. A cidade de Los Angeles é fotografada por Robert Elswit com alguma familiaridade, como se a imersão dos personagens nas ruas fosse também a do espectador. Os edifícios altos de Downtown, vizinhanças como Culver City e Echo Park e as tão conhecidas freeways têm funções significativas, mais do que de mero preenchimento de cenários.
Logo na abertura, o filme se dedica a construir uma iconografia própria do ambiente em que se situa: Los Angeles
O gigantismo e grau de realismo das locações, contrastados com o tímido apartamento de Lou e a claustrofóbica ilha de edição da rede de televisão, surgem quase sempre à noite – remetendo, guardadas as claras diferenças de tom e técnica, ao retrato da cidade realizado por longas também noturnos, como “Colateral”, de Michael Mann.
Jake Gyllenhaal e o diretor Dan Gilroy
A imagem, aqui, cumpre papel fundamental. De maneira mais óbvia e desde o início, se assume um discurso fácil sobre seu poder (e o poder da mídia). Nina (Rene Russo), a funcionária do canal de notícias com quem o cinegrafista mantém contato, por exemplo, chega a afirmar que “Nós [a mídia] gostamos de crime, mas não de todo tipo de crime”.
Logo em seguida, durante o mesmo diálogo, o rapaz indaga se o interesse é por registros “sangrentos”, ao passo que a diretora o corrige: “gráficos”. Salvo determinadas sequências, porém, a violência a que o filme tanto se prende é explorada de modo mais sombrio do que propriamente perturbador, muito por ser frequentemente registrada pelo olhar de um personagem ausente de compaixão e transmitida por uma figura quase que igualmente fria.
É a partir do momento em que o cinegrafista declara sua obsessão pela filmagem que o longa passa a discutir com maior cuidado, menos cinismo e maior crítica as questões que propõe. Há uma cena, em especial, em que a câmera é carregada por Lou como um troféu, ao som de uma faixa um tanto gloriosa da competente trilha de James Newton Howard. A celebração do momento (um instante de transição sem volta, vale notar) é também a celebração da imagem e do poder que ela representa.
Ali, o protagonista deixa de ser apenas uma engrenagem daquela indústria de violência e passa metaforicamente à condição de liderança, assume a condição da própria mídia e toma para si sua questionável missão. Ele possui poder de barganha e se vale dele para perseguir seu interesse de controlar os meios para aquele fim ética e moralmente repugnante.
Quando afirma que sempre assiste ao próprio trabalho – aos arquivos banhados em sangue -, é reafirmada a ideia de que a violência gráfica e este jornalismo criminal que busca vítimas em vez de notícias se retroalimentam constantemente, dependem um do outro, são causas mútuas mais do que distantes motivação e consequência.
Semelhante sensação aparece quando o rapaz encara e é encarado por um adversário/colega de profissão (Bill Paxton), na resolução de um embate que anteriormente funcionava unicamente como propulsor da trama. A linha entre “Lou tem um emprego negado por um cinegrafista experiente” e “Lou nega a oferta do mesmo cinegrafista” já havia sido traçada, mas um simples jogo de plano/contraplano não somente gera desconforto visual e dirige o longa a um estado mais grave, mas também oferece um ponto final para aquela interação.
O recurso utilizado por Gilroy é simples, mas extremamente eficiente, e permite que o filme explore um paradoxo também já estabelecido: a ideia de que, por mais gráfica que seja a imagem, é inevitável manter o olho fixado na tela. Quem anuncia a tese é o próprio Lou, ao afirmar que “Um bom quadro não apenas conduz o olhar para a imagem; ele o mantém lá por mais tempo”.
Reside aqui talvez o maior mérito de “O Abutre”: entender que um bom quadro não é necessariamente um quadro bonito, mas, neste caso específico, um quadro para o qual não se quer parar de olhar. A ideia é bastante obsessiva, por vezes impositiva, mas ecoa na temática geral como se a mimetizasse – forma-se um filme sobre imagem que é também essencialmente imagético. No limite, os enquadramentos de Elswit são simples, pouco arrojados (menos até que os de Lou) e parecem se apropriar da linguagem da televisão para construir seu caráter cinematográfico com enorme habilidade.
“O Abutre” estabelece a ideia de que, por mais gráfica que seja a imagem, é inevitável manter o olho fixado na tela
Por mais que a onipresença e a competência de Gyllenhaal confiram mais nuances ao protagonista, portanto, é difícil tratar o projeto puramente como um estudo de personagem. O enfoque mais amplo, por mais contraditório que pareça, não é a individualidade daquela figura em específico, mas o que a alimenta, o que oferece as condições para que ela exista.
Há pouco o que dizer de Lou divorciado daquele contexto, para além de detalhes como sua atenção a um vaso de plantas, pois o filme conscientemente não se aprofunda em sua subjetividade – ao contrário, até mesmo suas interações mais pessoais, com Nina e Rick (Riz Ahmed), são extremamente objetificadas, racionalizadas, como sua própria personalidade. É como se, em mais uma valiosa contradição, ele dissesse que “o porquê de seguir um caminho é mais importante do que qual caminho seguir”, mas nunca soubéssemos os seus “porquês”.
Desta forma, o que se vê é também não é um filme de gestos – ao menos não de gestos sutis. A condução da obsessão de Lou ao seu ponto mais extremo é tratada como um caminho natural cujo desfecho é inevitavelmente explosivo. Inscritos em planos bem enquadrados e de duração precisa, os pequenos movimentos parecem ter menos expressividade do que aqueles de explosão, o que sugere que a reação do protagonista em frente ao espelho era apenas um prenúncio do ato final, tempestuoso e conduzido com muita qualidade.
Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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