Quem joga videogame sabe que a chave para aprender os novos golpes, ou truques, é repeti-los ao extremo. Às vezes o jogo exige um número específico de repetições para melhorar a habilidade, às vezes o único jeito de aprender é tentando até decorar. Bem, no cinema é a mesma coisa. Há uma série de técnicas específicas dentro da gramática cinematográfica, tudo isso à disposição do diretor, responsável direto pelas escolhas de movimento de câmera, uso de lentes e outras invenções visuais. Um erro comum – muitas vezes transformado em “estilo” – é repetir alguns deles à exaustão, como visto na recente série brasileira “O Brado Retumbante”, da Rede Globo. Aposto que todos os espectadores sabem de cor como fazer rack focus e como não fazer diálogos over the sholder.
Aproveitando minha breve passada por São Paulo em janeiro, conferi a mais recente minissérie da Globo. Muita gente tem falado sobre as câmeras HD do plim-plim e da melhoria na qualidade e tal, foi hora de colocar tudo isso à prova. Sem dúvida, o visual é impressionante e a alta definição valoriza muito um produto televisivo, assim como o famoso production value e a grandiosidade do projeto. Fiquei empolgado com o primeiro episódio especialmente pela decisão do roteiro em criar uma Linha do Tempo Alternativa, com um Brasil contemporâneo, mas cheio de alterações políticas. Pois bem, fui fisgado… mas alguma coisa incomodou. Seriam os vícios de TV, com cortes bem característicos ou alguns diálogos excessivos? Talvez. Fiquei com a pulga atrás da orelha.
A ficha caiu no segundo episódio. O diretor e o diretor de fotografia pareciam dispostos a tentar todas as vertentes possíveis e imagináveis do rack focus – quando o foco da lente varia entre o primeiro e o segundo plano, normalmente executado em diálogos para garantir a atenção do espectador num ponto específico – e de diálogos com over the shoulder sujo, ou seja, um personagem fala ao fundo, enquanto alguma parte do corpo da contraparte aparece, desfocada, em primeiro plano.
Por mais técnico que pareça, é responsabilidade do diretor garantir a manutenção de sua criação visual
Essas ferramentas são bastante efetivas e usadas por praticamente todos os cineastas de Hollywood. No caso de “O Brado Retumbante”, a insistência na mesma técnica passou a incomodar e aí é que mora o perigo, pois, rapidamente, fez a transição de truque bacana para elemento responsável por tirar o espectador do clima muito bem estabelecido pelos pontos fortes da produção, como, por exemplo, as belíssimas tomadas aéreas do Rio de Janeiro. Por mais técnico que esse argumento pareça, é responsabilidade do diretor garantir a manutenção de sua criação visual, não de ficar lembrando o público a todo momento que há uma lente focando e desfocando.
Entretanto, o rack focus repetitivo não chega aos pés da pior decisão da série. O uso do diálogo over the shoulder sujo é bem definido e aceito, aliás, praticamente uma obrigação para não parecer tudo certinho o tempo todo. A escorregada se deu pelo fato da direção ter optado pelo enquadramento mais estranho possível, ao colocar a parte suja – ou seja, o corpo ou cabeça do interlocutor – ocupando mais de 60% da tela, deixando o personagem que falava espremido no cantinho da tela. Isso é um deserviço quando se tem gente como Maria Fernanda Candido e Zé Wilker em ótimos papéis.
A ideia de ter atores famosos e talentosos é justamente se aproveitar de sua habilidade, não de esconde-los atrás da cabeça de alguém, e isso “O Brado Retumbante” fez aos montes. Chegava a ser um alívio ver uma cena limpa e sem exageros. A impressão é de que a equipe envolvida aprendeu esses truques e resolveu mostrar que sabia fazer. Ok, entendemos o recado, mas para isso eles cometeram o maior dos pecados: cair na repetição. TV normal pode ser feita no automático e cheia de clichês de enquadramento e técnica, é esperado. TV em HD e com um production value tão grande, e cara de cinema, não pode cair na mesmice. Variedade é obrigatória e a Rede Globo deveria saber disso.
Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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