Quando Amanda Palmer arrecadou 1.2 milhão de dólares através do Kickstarter há quase um ano – mais dinheiro do que uma gravadora gasta em média para lançar um artista pop – muitos se perguntaram se era esse “o futuro da música”. A afirmação estava estampada em um cartaz segurado pela própria cantora em sua campanha.
Na última semana, com um feito ainda mais impressionante alcançado por fãs da descontinuada série cult “Veronica Mars”, a dúvida foi novamente repetida, dessa vez em relação a indústria da televisão e cinema. Esse é mesmo o futuro?
Porém, qualquer que seja a mídia, ainda é pouco claro qual será o verdadeiro impacto de fãs pagando por suas obsessões na gargantuesca engrenagem pré-estabelecida das grandes companhias produtoras de entretenimento.
Deveriam os fãs pagar pela produção de um filme de estúdio?
O Kickstarter para transformar “Veronica Mars” em um filme de Hollywood bateu todos os recordes prévios do mais popular site de crowdfunding. Em apenas 12 horas, se tornou o mais rápido projeto a atingir tanto 1 milhão e 2 milhões de dólares. A cifra, aliás, foi a mais alta já pedida através da ferramenta. No momento em que finalizo esse artigo, o volume arrecadado já está na marca de 3.6 milhões.
É um acontecimento histórico para o mercado, sem dúvida, mas com uma dose de cinismo e polêmica extra. Ao contrário de projetos independentes financiados pelas pessoas, o filme de “Veronica Mars” não tem o desprendimento e liberdade que se imagina de uma iniciativa crowdfunding.
Desconhecemos qual é o acordo que o produtor e criador da série, Rob Thomas, tem com a Warner, porém não se engane: Será um filme pago pelos fãs, mas com benção do estúdio. Tudo só começou com a autorização da empresa, que detém os direitos da franquia, e após ver o sucesso da campanha online deu luz verde para as filmagens. A distribuição, por exemplo, geralmente o maior problema de um projeto independente, terá certamente a mão pesada da Warner.
É por causa disso que surge a controvérsia: Deveriam os fãs pagar pela produção de um filme de estúdio?
Para um projeto no Kickstarter, 2 milhões de dólares é dinheiro sem prescedentes. Para uma empresa como a Warner Bros é cafézinho. E se apenas esse montante é o suficiente para realizar o filme, é óbvio que poderiam tê-lo feito da maneira tradicional.
Mais do que o dinheiro envolvido, a campanha no Kickstarter provou para a Warner Bros que uma série cancelada ainda desperta interesse.
Dessa forma, alguns enxergam nisso um futuro em que uma empresa multibilionária repassa os riscos para os fãs, enquanto mantém todos os benefícios que um produto de sucesso pode gerar. Em resposta a isso, devemos considerar que, no caso de crowdfunding, o único risco embutido é a decepção. Se o projeto não conseguir dinheiro, ele simplesmente não acontece. Ninguém perde o investimento prometido.
Em comparação com produtores profissionais, que investem dinheiro em busca de retorno financeiro, um fã que coloca a mão no bolso por um filme só quer, bem, assistir o filme. Talvez ele não goste do roteiro, de uma cena, ou do final, mas não terá gasto muito mais do que o valor de um ingresso de cinema.
Mais do que o dinheiro envolvido, a campanha no Kickstarter provou para a Warner Bros que “Veronica Mars” ainda desperta interesse e tem apelo. É natural que o estúdio não aceitasse financiar um filme de uma série que foi cancelada por baixos números de audiência. Se crowdfunding significasse risco e perda do valor investido, a história seria bem diferente.
Hallelujah! It’s a green light my friends. I love you all, but particularly the donors among you. #Veronicamars .@imkristenbell
— Rob Thomas (@RobThomas) 14 de março de 2013
É notório também que diversos projetos do Kickstarter tiveram dificuldade em cumprir as contrapartidas no tempo estipulado. Ter uma empresa de grande porte participando de um projeto “independente” pode ser uma garantia da entrega dos produtos prometidos. Grande parte das 55 mil pessoas que deram dinheiro para tornar “Veronica Mars” realidade não quer só dinheiro: serão milhares de DVDs, Blu-rays, posters e até algumas sessões privadas de pré-estreia. Ou seja, o montante é grande, mas a conta não fecha só com a produção e lançamento do filme.
Amanda Palmer referenciou a campanha de “Veronica Mars” no Twitter dizendo que “o mundo está mudando e nós estamos assistindo”. É verdade, mas obviamente não para todos. Segundo dados do próprio Kickstarter, mais da metade dos projetos não atinge o mínimo solicitado.
O modelo econômico do Kickstarter funciona bem em um ambiente livre de riscos, e uma campanha como a de “Veronica Mars” abre os olhos do mercado, mas difícil dizer se poderá ser replicado em uma escala que realmente altere o futuro da indústria financiadora de criatividade. Muitas criações artísticas de sucesso só foram possíveis quando alguém resolveu arriscar, ainda que todos os indicativos apontassem o fracasso.
Porém, ainda mais importante é o fato de que a luz verde das propriedades intelectuais mais valiosas do mundo continuará na mão de poucos. Nenhuma empresa abriria mão de influência e domínio a longo prazo, que valem muito mais do que 40 ou 50 dólares de apenas 55 mil pessoas uma única vez.
Sendo assim, aliado ao interesse dos fãs agora escancarado e somado a toda a exposição que o crowdfunding gerou, que eu apostaria que a Warner vai injetar mais dinheiro na produção do filme do que o que será arrecadado através do Kickstarter. Afinal, se o sucesso se estender além do oba-oba online, encomendar uma sequência ou remake no ano seguinte pode trazer ainda mais retorno.
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Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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