Todos sabemos da importância da BBC para a história da comunicação, para a Inglaterra e para a história da música gravada. Por isso quando a estatal britânica resolveu reunir todas suas vertentes musicais numa mesma plataforma chamada BBC Music, nos preparamos para o aplauso. Afinal, estamos falando da BBC.
O gesto é uma evidente tentativa de fazer sua grife manter-se atual, reunindo sua produção ao redor do tema “música” num mesmo canal, sejam playlists, programas de rádio, entrevistas ou shows em seus estúdios. A interface do site é voltada para dispositivos móveis e tenta reunir diferentes conteúdos em abas diversas – nomes de programas, gêneros musicais, nomes de artistas, notícias – e oferece um serviço chamado Playlister, que além de disponibilizar sequências de músicas assinadas pelos canais da emissora também permite ao ouvinte fazer suas próprias seleções e descobrir músicas novas. Resumindo, a emissora criou um Spotify próprio para reorganizar seu conteúdo online e assim tenta fazer valer seu nome no atual cenário global de música.
Assistimos, desde o início do século, a uma briga de logotipos de todas as áreas ao redor deste tema e é neste cenário que o novo BBC Music quer brigar, entre velhas gravadoras e novos aplicativos, fabricantes de aparelhos portáteis e empresas de telefonia móvel.
A BBC criou um Spotify próprio para reorganizar seu conteúdo online e assim tenta fazer valer seu nome no atual cenário global de música
A empresa gaba-se que seu novo projeto é “uma ambiciosa onda de novos programas, parcerias inovadoras e iniciativas pioneiras que afirmam o mais forte compromisso da BBC com a música em 30 anos”, reza o release. Um blablablá corporativo pesado, que parece mais disposto a equivaler-se a um cenário musical mutante do que a impor sua própria importância.
A nova plataforma chega ao mundo acompanhada de um clipe. Uma versão cheia de artistas conhecidos – de diferentes gêneros, épocas e países – para regravar o clássico dos Beach Boys “God Only Knows”. Ok, vamos ver…
O resultado é espetacularmente brega. Aliás, brega é pouco. Transcende os limites do brega. Brega é só o conceito de reunir vários artistas para cantar uma música conhecida por todos. O “We Are the World” era menos brega porque pelo menos lançou uma musica nova. Mas esse clipe, essa versão, esse conceito… Tudo errado.
O resultado é espetacularmente brega. Aliás, brega é pouco. Transcende os limites do brega. Brega é só o conceito de reunir vários artistas para cantar uma música conhecida por todos.
Não apenas pela escolha dos artistas, que funciona até a página três. Há clássicos de menos (Stevie Wonder, Elton John, Brian May e o próprio Brian Wilson) e pop contemporâneo de mais (Dave Grohl, Lorde, Pharrell, Chris Martin, Florence Welch, Sam Smith, Jake Bugg, Kylie Minogue e Jamie Cullum), um inevitável Jools Holland e um evitável One Direction, além de artistas eruditos (Eliza Carthy e Danielle de Niese) e “do resto do mundo” (Baaba Maal) para dar aquele molho de “pluralidade”, além da BBC Concert Orchestra e um coral com 80 vozes.
Se no quesito música o resultado é mediano, na parte visual é constrangedor. A direção de arte do clipe deixa tudo pior ao colocar asas negras na Lorde, Elton John coberto de borboletas azuis, um tigre pulando sobre o piano de Brian Wilson, Kylie Minogue flutuando em uma bolha, Stevie Wonder cercado de diamantes… Trata artistas não como personagens mais sensíveis que nós, mas como um circo de pessoas estranhas. É um delírio psicodélico careta, uma caricatura musicada da direção de arte de Tim Burton filtrada pelo filme “As Aventuras de Pi”.
O clipe coroa uma iniciativa que parece tirar a majestade da BBC. Ao descer de seu próprio pedestal, a emissora perde seu tom austero e tenta criar um universo particular clean e higienizado, mais próximo das campanhas publicitárias de marcas de celular ou de serviços de streaming do que de um padrão BBC de qualidade. Basta comparar essa versão com outra, feita pela emissora há dezessete anos, quando ela também reuniu veteranos e novatos para cantar uma música conhecida, no caso “Perfect Day”, de Lou Reed.
“God Only Knows” parece uma súplica para não perder ouvintes
Além do próprio Lou Reed (fazendo “air piano”), a versão de 1997 ainda tinha participações de Bono, David Bowie, Suzanne Vega, Elton John, Burning Spear, Emmylou Harris, Tammy Wynette, Shane MacGowan (dos Pogues), Robert Cray, Skye Edwards (do Morcheeba), Dr. John, Emmylou Harris, Brett Anderson (do Suede), Laurie Anderson e Tom Jones – tudo bem, também tiveram os meninos do Boyzone. Mas ao comparar a “Perfect Day” de 1997 e a “God Only Knows” de 2014, percebe-se que até o fim do século passado a BBC ainda mantinha alguma austeridade, mesmo que um filtro visual no clipe quisesse deixá-la com uma cara moderna.
E o lançamento da canção de 1997 não tinha nenhum intuito inovador – era apenas um comercial feito para a TV para reforçar que, com como dizia a mensagem ao final do anúncio, “não importa qual é seu gosto musical, ele é saciado pela BBC Rádio e Televisão. Isso só é possível graças à forma incomparável como a BBC é paga por você. BBC. Você faz o que ela é.” “Você vai colher o que plantar”, como cantava escancaradamente o refrão.
“God Only Knows”, por outro lado, parece uma súplica para não perder ouvintes – “Só Deus sabe o que eu seria sem você”, canta a canção perfeita de Brian Wilson mas também parece cantar a BBC, que perde seu rigor para exibir-se como mero zoológico de personagens exóticos, estes tais artistas que fazem música. Havia uma empolgação para aplaudir, uma antecipação otimista sobre como a emissora marcaria sua entrada no século digital e assistimos a uma campanha de marketing mediana cheia de celebridades e efeitos especiais. O oposto do que se esperaria da BBC.
Tudo errado.
Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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