Eu e mais alguns milhões de pessoas pelo mundo estamos ansiosamente esperando a quinta-feira, 18 de dezembro de 2014. Nesse dia vai ao ar o último episódio da primeira temporada de “Serial”, uma série que virou febre no mundo inteiro (relembre o “Qual É a Boa?” do Alexandre Maron).
Mas com algumas peculiaridades: “Serial” é um podcast. É só áudio. Não foi produzido por um grande estúdio nem vai ao ar numa grande emissora. E a história é real. Ela está acontecendo enquanto você lê esse artigo. Provavelmente o último episódio não vai trazer conclusão alguma.
Bom, acho que chegou a hora de eu explicar do que se trata a série antes de falar do fenômeno que ela é. Lá vai:
Em um bairro pobre perto de Baltimore, nos Estados Unidos, uma menina de 18 anos, Hae Min Lee, filha de imigrantes coreanos, desaparece. Um mês depois, seu corpo é encontrado em uma cova rasa num parque distante. Em algumas semanas seu ex-namorado, Adnan Syed, um rapaz muçulmano, filho de imigrantes paquistaneses, é acusado de tê-la matado, inconformado com o término do namoro dos dois. O rapaz vai a julgamento.
A principal testemunha é um amigo seu, Jay, que diz que ele planejou tudo. Baseado principalmente no testemunho de Jay, Adnan é condenado a prisão perpétua pelo crime. Ele alega inocência.
“Serial” é um podcast. É só áudio. Não foi produzido por um grande estúdio nem vai ao ar numa grande emissora. E a história é real.
Tudo isso aconteceu em 1999. Adnan faz parte de uma comunidade de imigrantes muçulmanos, que se organizou para levantar fundos e ajudar a provar sua inocência. Uma pessoa dessa comunidade se aproximou de Sarah Koening – jornalista e produtora do conhecido programa de rádio “This American Life”, que conta histórias diversas da vida de pessoas que vivem nos Estados Unidos – pedindo ajuda para divulgar a o caso.
A equipe do “This American Life” estava mesmo pensando em fazer uma espécie de documentário em série, em que cada episódio contasse uma parte de uma história. E o caso de Adnan Syed veio a calhar.
No primeiro episódio da série, que Sarah Koenig narra em primeira pessoa, ela explica que vai investigar e contar a história na medida em que vai descobrindo os acontecimentos. E que não sabe onde vai dar.
Audiência equivalente a uma série de TV de sucesso
Os produtores de Serial alegam ter 1,5 milhão de ouvintes por episódio. É equivalente a audiência semanal da maior rádio dos Estados Unidos. Ou de uma série de TV de sucesso.
E a comparação que todo mundo tem feito, é essa, com a TV. Além dos números de audiência, a relação que ela cria com a audiência é similar. Danny Züker, um dos produtores de “Modern Family”, postou no Twitter que a série é o seu “TV show” favorito.
E por isso o programa tem sido tratado como o “renascimento do podcast”. É um pouco agridoce escrever isso aqui, porque eu trabalho com podcasts há um bom tempo, já dei palestras falando o quanto o formato é bom e tem bons números. O próprio “This American Life” tem mais de um milhão de ouvintes (só que levou 4 anos pra conseguir isso). Mas acho que “Serial” foi o primeiro a atingir o nível “até a minha mãe” de popularidade e entendimento, no principal mercado do mundo.
“Serial” foi o primeiro a atingir o nível “até a minha mãe” de popularidade e entendimento
“Até a minha mãe ouve” ou “até a minha mãe sabe o que é” são as frases que a gente diz quando quer explicar que um formato ou programa é simples o suficiente ou popular o suficiente. Deixou de ser nicho. Deixou de ser algo que nerds, geeks e aficionados falam entre si.
Talvez porque os smartphones finalmente passaram a ter aplicativos de podcasts fáceis o suficiente. Ou talvez porque esse era mesmo o tempo necessário para que o formato se tornasse maduro. Ou talvez porque faltasse um programa interessante e viciante como “Serial”.
O fato é que a série já carrega o formato nas costas. Durante a pesquisa para esse artigo, eu cheguei a achar outro podcast onde os apresentadores debatem o último episódio de “Serial”. Um podcast sobre outro podcast.
Gonzo-new-journalism-podcast
Uma das coisas mais legais de “Serial” é o uso criativo que eles fazem da produção de áudio. Música, trilha sonora, depoimentos gravados, narração, efeitos sonoros… tudo é combinado de uma maneira única – boa parte já utilizada em “This American Life”, verdade seja dita – mas que ficam muito mais evidentes em um programa seriado de tema único como esse.
Ao contrário de muitos podcasts, que tem diálogos e interações, boa parte de “Serial” é apenas narrado por Sarah Koenig. E mesmo assim, todos esses componentes são capazes de dar ritmo e identidade para a obra.
Ao contrário de muitos podcasts, que tem diálogos e interações, boa parte de “Serial” é apenas narrado por Sarah Koenig. E mesmo assim, a obra tem ritmo e identidade.
Ao invés de simplesmente contar o caso em ordem cronológica, a série foi divida em capítulos, cada um focado em um aspecto do caso – O crime, as evidências, os depoimentos, a investigação, o julgamento… Esse formato torna o grande número de informações fornecidas mais inteligível, mas também permite que algo que seria puramente jornalístico se torne um pouco de entretenimento. Dessa forma não é preciso estabelecer todas as evidências e informações logo no começo. E os ouvintes podem balançar de um lado para o outro: “Adnan é inocente”, “É culpado”, “meu deus, é impossível chegar a uma conclusão”.
O que é legal, porque é justamente como a própria Sarah Koenig se sente. Ela mesma faz questão de dizer em vários momentos do programa, que não sabe qual é a verdade da história. É possível perceber que ela estabelece um relacionamento com Adnan ao longo da investigação. E que ao mesmo tempo se força a manter os pés nos chão e simplesmente não começar a advogar a favor dele. Acaba sendo um pouco de jornalismo gonzo e um pouco de new journalism.
Em entrevista ao The Guardian, a própria Sarah Koenig afirmou que o formato de contar uma história de forma seriada é antigo. “Não é uma idéia original. Talvez seja na forma de podcast, e tentar fazê-lo como um documentário é bem, bem difícil”, ela disse.
“Mas tentar fazer de forma seriada é tão velho quanto [Charles] Dickens”.
O fato de ela usar o verbo “tentar” duas vezes é uma boa evidência de como tudo é muito experimental e nem ela sabe o resultado que terá.
Final decepcionante
Quando “Lost” acabou, muitos fãs ficaram decepcionados. Eu inclusive. Sem querer reacender a discussão aqui, mas a decepção foi basicamente porque a série era cheio de elementos intrigantes que no final não significavam nada. Deixou uma sensação de história incompleta. O autor criou o início mas não o fim.
A temporada acaba, mas a vida de Adnan Syed e outros envolvidos continua. Os milhões de ouvintes vão ficar atentos aos jornais para saber o veredicto do recurso que será apresentado em janeiro de 2015
Esse sentimento é justo com uma história de ficção. Mas “Serial” é sobre uma história real, que ainda está em andamento. A temporada acaba agora, em dezembro de 2014, mas já sabemos que haverá um novo recurso no tribunal em janeiro.
Esse talvez seja o aspecto mais curioso de “Serial”. Além de contar uma história que vai continuar depois que a série acabar, a própria obra se confundiu com a história. As investigações da Sarah Koenig, acabaram levando o caso a ser adotado por uma ONG que trabalha para provar inocência de condenados injustamente. E o programa pode acabar influenciando a decisão dos juízes, não só pela repercussão, mas por toda a investigação feita e contada nele.
Repercussão
Embora a temporada acabe esse mês, a vida de Adnan Syed e outros envolvidos continua. Os milhões de ouvintes vão ficar atentos aos jornais para saber o veredicto do recurso que será apresentado em janeiro de 2015. No Reddit, fãs formaram um fórum para contribuir com investigações sobre o caso, com o objetivo de realmente desvendá-lo.
Outros fãs juntaram 25 mil dólares por meio de crowdfunding para abrir um fundo escolar em nome da vítima, Hae Min Lee. E um terceiro grupo juntou as duas idéias e lançou um projeto de crowdfunding para criar uma ferramenta que ajude a desvendar o caso.
Nas redes sociais, fãs divulgam suas próprias investigações. Existem vídeos no YouTube mostrando os locais do crime. A loja da Best Buy onde o crime alegadamente ocorreu tem agora seus comentários moderados pelo Yelp, pelo excesso de piadas e referências ao crime. A própria Best Buy postou um tweet infeliz sobre o assunto e depois o deletou pedindo desculpas. O cereal Cheerios também postou a clássica piadinha com as palavras Serial/Cereal
E até a MailChimp, patrocinadora do programa, virou meme por causa do seu excelente spot onde uma criança pronuncia “mailkimp”.
Se eu não falo inglês, o que eu tenho a ver com tudo isso?
Eu sei que eu escrevi um longo artigo falando sobre o sucesso de uma série fora do Brasil, apenas com links em inglês. Desculpe por isso. Mas eu não poderia deixar você desinformado sobre o assunto.
Se você não puder participar do frenesi de “Serial”, sugiro que comece a acompanhar o que é feito no Brasil
Não dá pra legendar áudio. Mas é possível encontrar uma transcrição do primeiro episódio aqui. Um pessoal no Reddit está se organizando para transcrever os outros episódios. E o Daily Mail fez um bom resumo da história (com várias fotos). Você pode usar um tradutor online para conseguir entender tudo.
Mas mais importante do que isso é o impacto que isso traz para a produção como um todo. Se um documentário em podcast é visto como uma série de sucesso nos Estados Unidos, então o formato pode ser reproduzido aqui.
Aqui no Brainstorm9 mesmo temos 4 podcasts semanais. O Braincast, do qual eu participo semanalmente, e também o Anticast, o Mupoca e o Mamilos. O pessoal do Nerdcast, que é o maior podcast do Brasil há oito anos, também já experimentou com formatos de Audiodrama e até RPG.
E tem muito mais coisas legais sendo produzidas em língua portuguesa. Então, se você não puder participar do frenesi de “Serial”, sugiro que comece a acompanhar o que é feito no Brasil. Quem sabe não sai daqui o próximo hype?
> Créditos: Foto Equipe Serial – Meredith Heuer/Post-Gazette
Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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