Para mim uma das histórias mais incríveis da antropologia é o culto à carga, um fenômeno que explodiu para valer nas ilhas do Pacífico depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Contando de maneira rápida, desculpe se você já conhece a história, japoneses e americanos fundaram bases militares nas ilhas e não se preocuparam muito em fazer contato com os nativos (estavam ocupados demais matando uns aos outros).
Os exércitos dos países mandavam suprimentos para as bases os povos locais tinham contato com estes produtos via soldados ou até mesmo por caixas que caíam fora do alvo. Sem ter a menor ideia do conceito de manufatura industrial aquelas roupas e objetos foram rapidamente classificados como presentes dos céus. Acabou a guerra, os militares foram embora e as dádivas divinas cessaram. Como voltar a receber os agora cobiçados bens? Como desfazer a injustiça com o povo, privado dos tesouros?
Moleza: os presentes, pensaram os líderes geniais, caíam dos céus porque os homens brancos realizavam complexos rituais para invocar o poder divino. Era só voltar a realizar os rituais que a fartura voltaria. Logo logo a população de várias ilhas começou a ocupar as bases abandonadas e reproduzir toscamente o dia-a-dia dos militares. Construíram — literalmente! — aviões de bambu e rádios de coco. Montavam guarda nos muros da base com rifles de galhos de árvore e vestiam capacetes de folha. Hasteavam bandeiras e batiam continência sem nem saber do que se tratava. Era aquilo que fazia os deuses darem presentes, aquela era a fórmula do sucesso.
É claro que isto é uma simplificação da história. Algumas culturas indígenas incorporaram elementos cristãos aos seus rituais ou então passaram a adorar como profetas generais e governantes do ocidente. Mas a ideia básica de culto à carga é confundir o ritual com a origem. É achar que falar em um rádio de coco vai fazer uma caixa cheia de Coca-Cola cair do céu.
Na comunicação também temos nossos cultos à carga. No South by Southwest 2011, evento ao qual sobrevivi semana passada, pude notar um movimento forte contra esse culto na (já) batida gamification de plataformas sociais.
Esse comportamento não é novidade. Quando o Twitter (que fez 5 anos ontem, só isso?) estourou, rapidamente começaram a aparecer serviços onde você só podia publicar vídeos de 12 segundos, textos de um parágrafo, mensagens de voz de 5 segundos… Como se todo o sucesso do Twitter fosse por conta da limitação de 140 caracteres. (que no Twitter nasceu por causa de uma limitação real da plataforma de SMS e não por um desejo de seus criadores)
Nos últimos 2 anos, com o crescimento do Foursquare e outros jogos sociais era de se esperar que o conceito de divertir as pessoas como incentivo para o uso de plataformas crescesse. Só que o que se viu foi mais um culto à carga: badges, prefeituras, prêmios, estrelinhas douradas… Procurou-se o caminho mais curto para a satisfação imediata.
Não estamos falando aqui da imitação barata buscando carona numa moda. Quando um jogo começa a fazer sucesso na App Store começam a pipocar vários outros usando uma mecânica parecida na esperança de defender um trocado como “o próximo Angry Birds”. Os 300 clubes de compra brasileiros, que copiam o Groupon sem absolutamente nenhuma inovação no modelo de serviço estão nesta categoria. Não, o culto à carga é mais profundo que isso. É genuinamente acreditar que uma consequência é, na verdade, a causa. É confundir o culto com a cultura.
É achar que o caminho para ser genial como Steve Jobs é tratar mal seus funcionários e dar palestras recheadas de adjetivos. É achar que para criar produtos como o Google você deve dar aos funcionários almoço de graça e 20% do tempo para criarem projetos pessoais. É achar que para ser uma boa agência digital você deve ter um videogame no escritório e nunca, jamais, inscrever seus trabalhos em festivais criativos.
Conta, aliás, a lenda que um grande executivo brasileiro foi ao Google uma vez e lá soube que a empresa é, basicamente, formada por profissionais com alguma pós-graduação. Não pensou duas vezes. Chegou em seu luxuoso escritório na Faria Lima e demitiu sumariamente quem não tinha pelo menos um mestradozinho.
Quando seu chefe ou cliente aponta uma peça ou ação de sucesso que ele viu aqui no B#9 e diz “quero um desses” ele está jogando a inovação pela janela e fazendo culto à carga. (você nunca faria isso, nós sabemos) É o caminho fácil achar que esta é a solução, mas as caixas de Coca não vão cair do céu. Me deixa chateado ver o mercado brasileiro sempre caindo para o lado de cargocultização dos cases gringos. Já fomos os mais criativos do mundo digital e hoje somos só caras com chapéus de folha de bananeira.
No SxSW 2011 — que terminou semana passada e só agora estou conseguindo me recuperar — vi que tem gente do mundo todo caindo nessa armadilha. O quanto você olha para um trabalho que admira e tenta extrair o suco em vez da casca e se pergunta os porquês primordiais de algo ser bom. Pode não ser necessariamente fácil sacar que o que você está começando a fazer é um culto à carga, mas saber da existência desta armadilha já é um bom começo.
O SxSW é o famoso “você tinha que estar lá para ver” e, se eu fosse você, já começava desde hoje a tentar convencer seu chefe a te mandar pra lá ano que vem — mesmo com a hipsterfera dizendo que SxSW já era, já orkutizou. Foram mais de 1000 palestras para escolher em 5 dias de evento e longe de mim tentar aqui contar como foi cada uma que eu fui. Mas dá pra dizer que fui em vários painéis onde era mostrado, muitas vezes na prática, ali com a platéia, que gamificar alguma coisa não tem nada a ver com badges e estrelinhas douradas.
A ideia é tornar as tarefas mais parecidas com uma brincadeira. Várias pessoas chegaram no SxSW procurando “a próxima killer app”, depois que Twitter e Foursquare estouraram de lá para o resto do mundo. Não houve nenhuma, mas ficou clara a mensagem, que eu assino embaixo: menos gamificação e mais brincadeirização.
Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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