A cinebiografia de Joãosinho Trinta (ou João Jorge ou Joãosinho das Alegorias, como o próprio filme se divide) é feliz por investir e detalhar o processo criativo de um dos maiores artistas de seu tempo, mas peca por fazê-lo de maneira vacilante, ainda que por vezes a hesitação pareça tentar reproduzir as mudanças de comportamento do personagem central.
Em busca de retratar o carnavalesco, interpretado com segurança por Matheus Nachtergaele, desde o início da carreira como bailarino no Teatro Municipal do Rio de Janeiro até o sucesso na avenida, “Trinta” tropeça em determinados clichês – o do “artista incompreendido” sendo o mais forte deles -, que felizmente não se estendem por mais que um punhado de cenas.
Este traço talvez decorra da tentativa do cineasta Paulo Machline de se afastar do caráter documental de seu longa “A Raça Síntese de Joãosinho Trinta”, de 2009. Sua câmera, possivelmente refletindo este novo enquadramento, busca esquemas simples de plano e contraplano nas mãos do diretor de fotografia Lito Mendes da Rocha, seja nos diálogos casuais em torno de uma mesa ou na alternância entre palco e espectador, presente sobretudo na primeira metade da obra.
Entre um obstáculo e outro, o filme dedica sequências inteiras a cada aspecto que compõe a genialidade de João durante seu processo criativo
O recurso, embora óbvio e constante, não atrapalha, sendo auxiliado por elipses bem eficientes para percorrer os primeiros treze anos de trabalho do artista com certa fluidez (variando em segundos entre entrada e saída de cena e aplausos da plateia).
Há pequenas inserções do protagonista, apenas para pontuar determinados sentimentos em momentos-chave de sua trajetória, como quando passa a trabalhar também na área cenográfica, abandonando por um período a dança, ou no trecho em que é confrontado pelo irmão homofóbico (Marco Ricca), envergonhado por sua profissão no balé – aqui, a câmera é acertadamente econômica, sintetizando o desolamento do personagem em um belo plano fechado.
Quando parte para o envolvimento de Joãosinho com o carnaval da Acadêmicos do Salgueiro, o foco se volta para a expressão criativa do personagem. Detalham-se as etapas da construção um tanto repentina do novo enredo, motivada pela briga entre Fernando Pamplona (Paulo Tiefenthaler), o carnavalesco anterior, e Germano (Ernani Moraes), o presidente da escola.
Entre um obstáculo e outro, o filme dedica sequências inteiras a cada aspecto que compõe a genialidade de João durante aquele processo: seu estudo de história e história da arte (o conhecimento quase enciclopédico de Pitágoras e Verdi, por exemplo) ganha atenção inicial e é ladeado em seguida às lembranças de sua infância no Maranhão, fundamentais para a nova produção do grupo.
Incomoda, porém, que fatores aqui apresentados como paralelos não sejam tratados com tamanho zelo. É o caso de seu apreço pelo desenho, sempre trazido em enquadramentos muito abertos (exceto quando o trabalho já está concluído e quer-se provocar dinamismo), e de suas convicções primordiais, resumidas em poucas e vagas frases, como “do lixo ao luxo” e “quem gosta de miséria é intelectual”.
Nesse sentido, o fenômeno da origem de “O Rei de França na Ilha da Assombração”, que passa da exaustão mental ao trabalho manual de Joãosinho, por vezes soa mais como um processo de organização de ideias e recursos do que como resultado de uma explosão criativa e de inspiração – um tom que parece falso, a julgar pelo discurso assumido próximo do fim do longa e pelas evidências de seu talento para improvisar, capaz de transformar bandejas de padaria em verdadeiros artigos luminosos de um dos carros alegóricos.
É encantador ver a transformação de Trinta e sua aceitação como artista, muito embora estas surjam atrapalhadas pela inconstância das figuras ao seu redor
Ainda assim, é encantador ver a transformação de Trinta e sua aceitação como artista, muito embora estas surjam atrapalhadas pela inconstância das figuras ao seu redor, principalmente do antagonista Tião (Milhem Cortaz) e de seus colegas de diretoria, responsáveis por frear os passos do carnavalesco rumo à condição de profissional respeitado.
Igualmente incômoda é a insistência por desnecessárias sequências-resumo, cuja montagem alterna momentos distintos da vida de João para explicitar determinadas condições, como seu perfeccionismo com os preparativos finais do desfile e seu misto de pesadelo e flashback ao lidar com o risco aparentemente inevitável do fracasso.
O diretor Paulo Machline
Tais vícios, porém, são de certa forma minimizados pela eficiência do filme em abordar a complexidade do trabalho do artista, que equilibra ópera e samba com enorme habilidade. As sequências em que a bateria toca o samba-enredo e o que se ouve é uma peça de música clássica se desviam perfeitamente do tom cafona que poderia acompanhá-las e representa o principal mérito de Trinta: essa coexistência de estilos que, no limite, mais dialogam do que se chocam.
O músico André Abujamra é certeiro na composição da trilha sonora original, inserida com competência entre faixas conhecidas
Ainda sob este aspecto, vale notar que o músico André Abujamra é certeiro na composição da trilha original, inserida com competência entre faixas conhecidas (de “O teu cabelo não nega”, na abertura, a “Quando o carnaval chegar”), que expressam o humor do protagonista e situam o espectador no tempo com mais qualidade até que a contagem regressiva para o desfile e a divisão do longa em “capítulos” nomeados por anos e alcunhas (1960 – João Jorge, 1973 – Joãosinho das Alegorias e 1974 – Joãosinho Trinta).
A roupagem esquemática, contudo, volta a prejudicar a condução da trama quando se aproxima do desfecho. Os conflitos internos e pessoais, ao longo dela abordados como gravíssimos, são resolvidos sem maior alarde e têm suas implicações pouco exploradas. João é alçado à condição de herói inatingível em prol de uma resolução simples, sem que se dedique algum espaço à reflexão sobre sua postura e trajetória.
Contrariando posições assumidas em seu decurso, o longa o caracteriza como unanimidade em termos práticos da noite para o dia dentro da escola, oferecendo a ele um momento de comoção coletiva e o resgate emocionado de uma carta sobre sua infância, partindo dali diretamente para seu tão sonhado sucesso (com o octacampeonato no Rio de Janeiro e o “melhor enredo de todos os tempos”, apreso carnaval de 1989), o que chega a enfraquecer a até então bem-sucedida estratégia de recortar um período relativamente curto e bastante específico de sua vida e dele extrair um sentido mais amplo, tão somente com o intuito de oferecer à audiência um ponto final firme, embora menos inspirado e impactante.
Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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