[AVISO: Contém spoilers menores]
Para além de qualquer discussão mercadológica, mesmo sendo impossível dissociar a concepção desta nova franquia de seu potencial de arrecadação, a intenção de Peter Jackson ao transportar “O Hobbit” das páginas de J. R. R. Tolkien para os cinemas era compreensível. A experiência bem-sucedida com “O Senhor dos Anéis” deu ao cineasta a possibilidade de buscar novas tecnologias, explorar campos e nuances diversas daquele universo e retornar à Terra Média para uma nova aventura.
O fato de os 48 quadros por segundo terem sido abortados no meio do caminho não tornou o projeto menos ambicioso – à distância, parece ter sido a decisão mais acertada, o reconhecimento de que o formato não se fazia indispensável. Assim, pela força das circunstâncias e por uma clara reverência ao conteúdo literário originário, o que se confirmou foi uma série ainda mais ancorada nas bases já erguidas pela trilogia anterior, carregando os traços positivos e negativos desta herança.
“Uma Jornada Inesperada”, filme inaugural da nova tríade, trazia, além da distração tecnológica, um conjunto simples de elementos. Construído de modo tradicional como primeiro ato de uma história mais extensa, apresentava os personagens centrais e definia a importância de sua missão (que viria a ser reafirmada insistentemente nos longas seguintes) com um olhar inocente e curioso.
“A Desolação de Smaug”, por sua vez, apresentava novas provações a Bilbo (Martin Freeman) e companhia, dava a eles contornos mais bem acabados e tornava a ação mais constante, mas ao mesmo tempo se alongava e interrompia a resolução de alguns eventos e da própria jornada para forçar o capítulo derradeiro.
Peter Jackson e Ian McKellen no set
“A Batalha dos Cinco Exércitos” carrega várias das características de seus dois antecessores. Em termos de trama, retoma os acontecimentos do ponto imediato em que foi armado o cliffhanger anterior. Os anões recuperaram sua terra com a ajuda de Bilbo, mas Smaug ainda aterroriza a Cidade do Lago. Se o trecho inaugural traz humanos lutando contra a ameaça e oferece um forte indício de que a ação será ainda mais intensa nesta etapa da trilogia, a postura da companhia parece revelar não o contrário, mas uma posição mais conservadora.
Comandados por Thorin Escudo de Carvalho (Richard Armitage), eles agora precisam guardar a montanha e assegurar que ela não será tomada por novos invasores – que, de imediato, o líder suspeita serem homens e elfos em busca de sua recompensa. A conduta defensiva do grupo gera alguns desdobramentos importantes, tais como a oposição de forças entre Bilbo e o filho de Thrain e uma sensação de espera até que a ameaça verdadeiramente maligna se apresente.
O atraso para que o segundo elemento surja é marca típica de Jackson, que novamente aposta em um arco narrativo tradicional antes de colocar as forças em batalha. Faria sentido se esta fosse uma história isolada, divorciada de uma mitologia anterior.
Por uma clara reverência ao conteúdo literário originário, o que se confirmou foi uma série ainda mais ancorada nas bases já erguidas pela trilogia anterior
A despeito de já terem sido apresentados os combatentes e suas motivações, o filme dedica uma significativa fatia de seu tempo de duração retratando a montagem do acampamento dos humanos, a chegada dos elfos, a recuperação de Gandalf (Ian McKellen) e a obsessão de Thorin por ouro e pela Pedra Arken – supostamente visando conferir certa dimensionalidade ao personagem, para no fim fazê-la desmoronar num estalar de dedos na busca por um momento de reconciliação mais emotivo.
O aspecto visual, no entanto, não acompanha e aproveita este período de preparação para o conflito final. A familiaridade com aqueles cenários, por exemplo, parece fazer com que o filme não mais os explore com tamanha curiosidade e fascínio – a ida de Legolas e Elfa ao encontro dos Orcs é sinal desse esgotamento, dado o desperdício de um local que outrora seria tratado com maior atenção.
É evidente que livro e filme são obras distintas e que devem ser avaliadas separadamente, mas a sensação seria similar se Tolkien trabalhasse seu universo repetindo sempre a mesma construção frasal, os mesmos termos, ou se descrevesse ambientes novos e inexplorados apenas em inexpressivas notas de rodapé.
São também problemáticas a movimentação e o preenchimento dos espaços: a câmera se move por campos abertos, vilarejos e por cima de montanhas sem que se crie sensação de profundidade, valendo apenas para dimensioná-los em sua óbvia grandiosidade. Jackson, tão seguro no controle de sequências como estas em “O Retorno do Rei”, aqui parece confundir uma boa e segura direção com uma imensidão de planos de maior escala, mas que no limite pouco significam.
O constante movimento, sobretudo nas tomadas aéreas, é ainda prejudicado pela tecnologia 3D, de efeito similar ao dos outros dois longas – igualmente carente de criatividade -, e os melhores momentos ocorrem justamente quando a câmera se aquieta e retorna ao nível do solo – destaque para a queda de Galadriel (Cate Blanchett) e o momento em Bilbo se despede de Gandalf.
Freeman e McKellen provêem traços distintos a Bilbo e Gandalf, respectivamente, e cumprem suas jornadas com a habitual competência
O gigantismo também traz danos à condução das sequências de batalhas, que mais parecem uma réplica pouco inspirada da primeira trilogia. A luta pelo chão é filmado com proximidade, mas sem maior entusiasmo, tendo méritos apenas em se ater aos diferentes estilos dos envolvidos, à forma como cada um deles combate.
Nesse sentido, a coreografia funciona, mas a decupagem das cenas – um corte por golpe – tem efeito contrário do habitual: a ação se torna confusa e repetitiva, e sua dispersão em diversas frentes, em especial pela longa duração das sequências, é mais cansativa do que intensa ou dinâmica.
A impressão final do conjunto é mais satisfatória do que a soma das partes parece sugerir
A inserção de novas criaturas intriga pouco e suas habilidades são descritas antes mesmo que possamos vê-las na prática, o que elimina um possível efeito surpresa e contribui para a impressão de que a quantidade de personagens sem personalidade torna o filme bastante desequilibrado quando tira o foco de seus principais elementos.
O núcleo central, por sua vez, é novamente dono das melhores atuações. Freeman e McKellen proveem traços distintos a Bilbo e Gandalf, respectivamente, e cumprem suas jornadas com a habitual competência. Os líderes dos exércitos humano e de anões, Thorin e Bard (Luke Evans), são marcados por tons semelhantes de autoridade, não indo muito além da superfície, de “figuras masculinas importantes”.
Outros nomes relevantes, como Legolas (Orlando Bloom) e Tauriel (Evangeline Lilly), são afetados não apenas pela costumeira dificuldade de Jackson em construir romance de maneira natural, mas também pela insistência em forçar um triângulo amoroso e fazê-lo descer goela abaixo apenas por uma impressão de completude ao levar o filme numa toada sentimental.
As mesmas figuras, porém, são recuperadas pelos elos um tanto nostálgicos estabelecidos entre “O Hobbit” e “O Senhor dos Anéis”, realizada tanto em pontos simples, como a menção a Aragorn, quanto de modo mais explícito, principalmente no desfecho, quando recupera os minutos iniciais de “A Sociedade do Anel”.
Após uma jornada trôpega e instável, a impressão final do conjunto é mais satisfatória do que a soma das partes parece sugerir – e, se esta é mesmo a despedida de Peter Jackson da Terra Média, talvez o gosto que resta não seja tão amargo.
Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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