Bilbo Bolseiro foi sábio ao nos alertar sobre os perigos do simples ato de colocar o pé fora de casa. Embora tenhamos uma boa ideia e, na maioria dos casos, realizemos a tarefa planejada, os meandros da simples tarefa de ir do ponto A ao ponto B podem ser surpreendentes, cheios de novidade visual, intelectual e, claro, epifanias malucas.
Sinto-me exatamente assim toda vez em que um dos meus professores começam a falar, no curso de cinema da Los Angeles City College, onde curso cinema desde janeiro desse ano. Mais de uma década depois de me formar em jornalismo, encarei esse retorno aos estudos para realizar sonhos e construir novos mundos, entretanto, quem está sendo reconstruído sou eu por conta de posturas inesperadas dos professores. Ainda há esperança!
[Um breve parênteses, antes de mais nada. Já escrevi uma série de artigos sobre as primeiras matérias do curso – e a adaptação ao sistema de ensino público norte-americano. Esse novo projeto de vida, por assim dizer, já rendeu dois filmes. Esse e esse aqui, que, por enquanto, só tem o trailer. A partir de agora, a iniciativa passa a integrar o Brainstorm9 e a formação acadêmica em cinema é o foco.]
A LACC é uma universidade pública municipal cujo principal objetivo é capacitar a força de trabalho local a custo baixíssimo.
Já devidamente adaptado ao sistema de ensino público norte-americano e familiarizado com a universidade depois de quatro matérias, o início do ano letivo começou com outro pique (para saber sobre o semestre anterior, leia as outras matérias desse projeto). No menu de aulas selecionadas estão: direção de fotografia, direção, atuação/teatro e roteiro. Ou seja, o backbone do trabalho na linha de frente do cinema. Depois de torrar um bocado de dinheiro com os filmes no começo do ano, resolvi organizar as matérias de modo a não precisar gastar nada e concentrar no aprendizado da cadeira de diretor, não na prática em si. Bem, pelo menos foi o que pensei. Muita teoria agora, bastante diálogo e preparação para o ano que vem, quando concluo o curso. Bastou meia semana de aulas para meus sonhos entrarem pelo cano.
Fato, não vou precisar produzir nenhum filme e gastar dinheiro com fantasias, locações, passagens aéreas, equipamento e etc, por outro lado, a carga de trabalho é infinitamente maior do que nas matérias básicas. O resultado da primeira semana foi a seguinte lista de “deveres de casa: dois roteiros de curta-metragem (5 e 10 min), duas cenas para teatro (na qual terei que interpretar, vixe!), um monólogo para teatro, uma cena de cinema (que deve ser ensaiada e apresentada à classe com atores externos) e, fechando com chave de ouro, duas “foto novelas” e um mega trabalho de direção de fotografia que vai exigir um bocado do tapado tecnológico que vos escreve.
Muita coisa pro velhinho, com certeza. Mas – e sempre tem um mas! – estou delirando de alegria. A razão é simples. Deixei para trás os professores do básico meio que cumprindo tabela e dei de cara com os profissionais da área, gente que vive (ou viveu) do cinema, e ainda é totalmente apaixonada pela coisa. A maior surpresa foi o discurso de abertura da aula inaugural de Teatro, comandada por Fred Fate. Boa parte da aversão à atuação – por pura incompetência no ofício, que fique claro; não tenho nada contra atores – foi embora conforme o sujeito falava sobre sua ligação com a inspiração; da importância do teatro no destino de cada um; na beleza dessa prática como arte; e em sua relação com o público, mas, acima de tudo, com o sentido de propósito necessário a um ator em cada momento de sua vida. Sério. Fiquei emocionado.
Essa é uma das vantagens de se dar sorte, pois Fate é o chefe da cadeira de Teatro na LACC – onde a série “Community” é filmada, aliás – e resolveu pegar a aula introdutória como despedida acadêmica antes de sua aposentadoria, no ano que vem. Esses caras gostam de sair deixando um bom legado. Como disse, dei sorte. No lado oposto, trombei com um diretor de fotografia relativamente novo chamado Christopher Rossiter, completamente apaixonado pelo que faz e tão envolvente quanto linha dura. Nunca esperei ouvir uma defesa tão linda sobre o ato de contar histórias vindo de um diretor de fotografia. Ouvir o cara falando sobre as responsabilidades do DF, da obrigação de saber dramatizar uma cena e da forma ideal do posicionamento em relação ao diretor e ao resto da equipe marcou de forma tão intensa quanto as porradas à preguiça gerada pelo avanço da tecnologia. Rossiter contou:
“Um dia ouvi um Diretor de Fotografia dizendo que filmava no automático. Só disse que ele não era DF coisa nenhuma, mas queria era meter a mão na cara do infeliz.”
Claro, muito é armado para demarcar território, mas gostei do clima. Tive alguns professores assim no curso de jornalismo, mas a maioria estava no automático o tempo todo.
Esse tipo de coisa faz a diferença, sabe? Especialmente por serem habilidades extremamente criativas e cheias de especificidades técnicas. É preciso provocar o maior grau de envolvimento dos alunos para transmitir a mensagem. Especialmente em tempos de tanta crítica ao sistema educacional e, como vi num vídeo recente com Matt Damon, pessoas achando que professores são acomodados. Não houve algum político acéfalo brasileiro falando bobagem nesse aspecto também? De que professor deveria trabalhar por amor a causa e ganhar pouco mesmo? Pois é.
Bem, essa situação chamou a atenção dentro de um contexto essencialmente interessante. A LACC é uma universidade pública municipal cujo principal objetivo é capacitar a força de trabalho local a custo baixíssimo e, na maioria dos casos, com programas de bom nível. Com isso, o desempregado que busca outra área de trabalho pode se preparar e até mesmo os moradores de rua e pessoal de renda nula podem estudar. Isso resulta em um bocado de malucos espalhados pelo campus e nas aulas, mas não incomoda… muito.
O espírito desse semestre parece se concentrar no treinamento. Todos os professores querem transmitir um aspecto da profissão, no que aparenta ser uma boa mescla entre palestra, leitura e prática. Conversei com alguns colegas e todos compartilham a sensação de serem tratados como aprendizes, não como estudantes. Nunca tive essa perspectiva no jornalismo. Com os professores, fui estudante até o dia de me formar (embora já trabalhasse efetivamente na redação do Estadão desde o primeiro ano). Aqui, talvez pelo fato de muita gente ter bagagem ou trabalhar na área, e muitos já terem diplomas em outras áreas, a relação seja outra.
Ponto é, tô empolgadão e olha que não vou fazer nenhum filme dessa vez. Aliás, trata-se de reflexo direto dos erros e falhas de treinamento constatadas ao longo das filmagens e edição de “When It Ends”. De certa forma, estava maluco para ter esse treinamento antes de voltar a acender as luzes e ligar a câmera novamente. Preparação é tudo, fato.
A cada semana, voltarei com textos mais específicos sobre as técnicas apresentadas, conceitos mais relevantes e boas ideias apresentadas por professores e colegas até dezembro. Por hora, fica a sugestão dos livros que serão utilizados e referenciado nos próximos artigos. Clique nas imagens para ver na Amazon:
Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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