O WhatsApp pode, sim, sair do ar em território nacional, caso a ordem judicial seja cumprida. O objetivo do juiz que emitiu a ordem é forçar a empresa a colaborar com as investigações de um caso ocorrido em Teresina. Apesar de ainda correr em segredo de Justiça, o caso envolve a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente e, segundo o magistrado, a solicitação de suspensão do aplicativo encontra respaldo no Marco Civil da Internet; mas é possível que ele esteja enganado.
À Folha de São Paulo, o juiz Luiz de Moura Correia, responsável pela ordem, disse que busca forçar a empresa a colaborar com as investigações da polícia de Teresina. O processo corre em segredo desde 2013 e todas os pedidos para que o WhatsApp colaborasse com as investigações foram ignorados. Segundo o juiz, foi por isso que ele tomou uma atitude tão extrema, uma vez que os crimes que estão sendo investigados são graves. Ainda de acordo com o magistrado, interceptações telefônicas já não são tão eficientes como foram um dia. “[…] hoje ninguém usa telefone, usa o WhatsApp”, disse.
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A delegada responsável pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente de Teresina mantém o sigilo sobre o caso e não comenta se ele tem relação com pornografia infantil, mas diz que o ocorrido envolve a delegacia em que ela trabalha.
De acordo com uma nota do Núcleo da Secretaria de Segurança Pública encaminhada à imprensa, o mandato foi enviado aos provedores de infraestrutura e operadoras de telefonia móvel porque o WhatsApp se negou a colaborar com as investigações no país por não ter escritório no Brasil. O Facebook é dono do WhatsApp — a compra ocorreu em 2014 e custou US$19 bilhões — mas não é legalmente responsável pelo caso, já que as empresas atuam independentemente. A nota cita ainda que as decisões foram tomadas de acordo com as normas no Marco Civil da Internet.
De acordo com uma reportagem da Folha de São Paulo, as empresas de telecomunicações TIM, Oi, Claro e Vivo já se mobilizaram e entraram com mandados de segurança que visam a reverter a decisão. O Sinditelebrasil, em nota, afirma que “as companhias de comunicação não têm nenhuma relação com o serviço”. A reportagem também diz que ontem aconteceram reuniões com os representantes dos serviços para uma tentativa de resolver a questão. Segundo o juiz, caso o WhatsApp passe a colaborar com as investigações, o bloqueio ao aplicativo estará automaticamente suspenso.
Marco Civil
Pedro Paranaguá, doutor em Direito pela Universidade de Duke e professor da FGV, vê o mandato como “desproporcional”. Ele afirma que a atitude de retirar o aplicativo do país inteiro não tem amparo no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e nem no Marco Civil da Internet. Segundo Paranaguá, o Estatuto é aplicado em casos que envolvem crianças e adolescentes. No texto da Lei n˚ 11.829, de 2008, é definida pena de três a seis anos para quem disponibilizar ou divulgar, por qualquer meio de comunicação, qualquer tipo de registro — foto e vídeo, por exemplo — que contenha cena de sexo explícito ou pornografia envolvendo crianças ou adolescente:
Art. 241-A do ECA, modificado em 2008:
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
I – assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo; (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
II – assegura, por qualquer meio, o acesso por rede de computadores às fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo.(Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
§ 2o As condutas tipificadas nos incisos I e II do § 1o deste artigo são puníveis quando o responsável legal pela prestação do serviço, oficialmente notificado, deixa de desabilitar o acesso ao conteúdo ilícito de que trata o caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
O último parágrafo, grifado, explica que o conteúdo deve ser indisponibilizado, e não o serviço ou conexão, conforme é solicitado na ordem judicial. “Ou seja, o bloqueio ao WhatsApp não é amparado no ECA”, afirma Paranaguá.
Por serem meros conectores, as empresas de telefonia não podem ser responsabilizadas pelos conteúdos que foram gerados por terceiros, explica. O WhatsApp, no entanto, pode ser responsabilizado, de acordo com o Artigo 19 do Marco Civil da Internet, mas só no caso da ordem judicial identificar claramente qual o conteúdo que a empresa precisa disponibilizar. “A ordem judicial, no caso da Justiça do Piauí, portanto, é NULA, se não contiver a identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material”, diz. Além disso, o serviço não deve ser retirado do ar, e, sim, o conteúdo infringente ou as contas que o disponibilizam. “Essa medida é totalmente desproporcional e descabida. Prejudica milhões de brasileiros que usam o aplicativo diariamente. Não há qualquer proporcionalidade na ordem judicial”, afirma Paranaguá.
Ilegalidade
Segundo o advogado Rafael Moreira, a decisão é ilegal. “Suspender completamente o serviço de WhatsApp fere o direito a uso de todos os usuários, além de ir contra o livre acesso que dispõe o Marco Civil da Internet”, diz. Além disso, existe também a questão da territorialidade da decisão. De acordo com Moreira, cada juiz é responsável por um território vinculado a ele. “Esta decisão ultrapassa a territorialidade e não é qualquer processo que pode fazer isso”, conta.
Assim como Paranaguá, Moreira também acredita que o WhatsApp não pode ser responsabilizado pelo conteúdo que é gerado pelos usuários. “Ele é como o Google, ele não é um gerador de conteúdo, ele é uma rede. Logo, ele não tem como controlar o que acontece ali, até porque isso seria violar a intimidade dos usuários e, além disso, a lei dá ao juiz o poder de indisponibilizar o conteúdo, não o serviço”, explica.
A legislação brasileira é aplicável ao WhatsApp, pois basta que uma empresa preste serviços no país para que ela precise seguir nossas leis. Porém, a empresa não é automaticamente sujeito às decisões do Judiciário por não ter representação no Brasil. Sem essa representação, a decisão esbarra na soberania do estado brasileiro, que acaba dependendo de decisão dos Estados Unidos, onde o WhatsApp tem sede. “Se a empresa não está no Brasil, ela não se sujeita à jurisdição brasileira. Então, a execução de uma decisão depende de uma carta rogatória, que é um documento do Judiciário de um país para o Judiciário de outro país, pedindo a execução de uma decisão”, explica Moreira.
Jurídico ultrapassado
Segundo o advogado, existe um desconhecimento técnico enorme no Judiciário do Brasil, que não raras vezes simplesmente não compreende como a internet: quem faz o que, quem é responsável pelo que etc. “O Judiciário já é historicamente bem resistente à mudanças, e vejo a internet como algo que ainda não é bem compreendido”, diz ele e cita exemplos: o caso Cicarrelli, com a decisão do Jurídico que buscava obrigar o Google a retirar pesquisas sobre a modelo do ar.
O caso Cicarrelli não é único, infelizmente. Em 2013 o Facebook quase ficou dois dias fora do ar depois de postagens feitas pela modelo Luize Altenhofen sobre vizinho dela. No caso, o dentista Eudes Gondim Junior, o vizinho, teria agredido o cão de Luize após o animal ter invadido a casa dele e ameaçado seus filhos. Luize repudiou o ato por postagens difamatórias no Facebook, que levaram Gondim a processá-la.
A Justiça determinou que as postagens fossem deletadas e, caso o Facebook não cumprisse a ordem, a rede ficaria 48 horas fora do ar em todo o território nacional. A companhia, no entanto, decidiu cumprir a ordem e o Facebook não saiu do ar.
Imagem de topo: montagem com foto de tecnomovida/CC
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