Por que não se pode discursar hostilmente à ONU, se o que se denunciava ali, com palavras, são práticas hostis, violências materiais, contra os pilares da organização?
Não é irrelevante que se trate um comunista ditador assassino, que dispara mísseis por sobre territórios alheios, como folclórico, quase fofinho, um gordinho irresponsável, ao passo que tudo quanto feito ou falado por um chefe de Estado legitimamente eleito, regulado pela mais rígida institucionalidade, seja recebido como potencial ataque à humanidade.
O episódio recente que opõe o presidente dos EUA — na verdade, o mundo livre — ao déspota norte-coreano é o último grito da relativização, não raro inversão, de valores que adoentou a sensibilidade crítica mundial, com especial efeito neste país incapaz de ler e analisar. Porque é disto — de uma chaga da compreensão — que se trata, segundo se informa ao povo do Brasil: a ameaça real não vem do tirano que factualmente solta bala, mas do democrata que lembra ter muita bala para reagir.
Esse barbarismo interpretativo, claro, tem consequências para muito além do autoflagelo do intérprete bárbaro, pois planta as condições para que gente importante, a sério, compare Kim Jong-un a Donald Trump, o que equivale a nivelar opressão e autodeterminação. Para que reste bem claro: por ignorância ou desonestidade intelectual, investe na histeria aquele que equipara um ditador, herdeiro de uma ditadura, senhor das leis, insubmisso a qualquer instituição, a um presidente eleito democraticamente sob as regras da mais sólida democracia, submetido a uma Constituição que vige há 230 anos — não importa quem ele seja.
Essa, objetiva, entre ditadura e democracia, é a distinção que fundamentou o tão atacado discurso de Trump na ONU. Intervenção — decerto inspirada em Ronald Reagan — que se deveria comemorar: dura defesa do solo, o da liberdade, sobre o qual a civilização hoje se assenta, convenção em nome da qual, aliás, as Nações Unidas foram concebidas; afirmação da independência nacional como alicerce inegociável; manifestação de compromisso com a ideia de que nações as mais diversas podem cooperar para proteger suas soberanias e prosperar; a rigor, corajosa apologia do Estado-nação como o maior veículo à elevação da condição humana, razão pela qual seu “America first” não deveria ser entendido como em detrimento dos demais países, mas em benefício de que outros líderes não façam como Barack Obama e também priorizem seus povos.
Mas que nada! O brasileiro influente, homem do mundo, moderninho informado pela CNN, achou ruim. E assim, sem qualquer reflexão, a coisa se fixou. Porque, se vem de Trump, só pode ser negativo. Né?
Ocorre que Donald Trump cumpriu memorável participação na última Assembleia Geral da ONU e fez um discurso (oh!) revolucionário. E isso exatamente pelo motivo com que tentam desqualificá-lo: porque — sem lhe passar a mão na cabeça — cobrou da organização que tire os olhos covardes da burocracia e admita que estão em curso uma cruzada contra os valores da civilização ocidental e uma progressiva dilapidação do patrimônio democrático erguido ao longo de séculos e de muitas guerras.
Foi, sim, uma fala hostil à ONU. E daí? Por que não se pode discursar hostilmente à ONU, se o que se denunciava ali, com palavras, são práticas hostis — violências materiais — contra os próprios pilares da organização? Por que não se pode exigir da ONU que se levante da acomodação em que se aboletou — e que serve de escudo estimulante ao genocídio cometido ou patrocinado por países-membros — para perfilhar as próprias bases, senão do concerto equilibrado das nações, de sua caríssima estrutura?
Que se chamem as coisas pelo que são: ditaduras, essencialmente depravadas, em diferentes graus de putrefação, corroem a existência individual na Coreia do Norte, em Cuba e na Venezuela — matam. É simplesmente transgressor — e sintomático do tempo em que vivemos — um chefe de Estado ter o topete de dizer a verdade na ONU: “O problema na Venezuela não é que o socialismo tenha sido mal implementado, mas que o foi fielmente.”
Não é aceitável a um democrata senão celebrar que o presidente de uma grande nação suba à tribuna da ONU para acusá-la de complacência com membros que apoiam terrorismos e minam a organização desde dentro, ocupando espaços e lhes subvertendo as funções. Ou não representará o sequestro do sistema que governos avessos ao mais mínimo direito humano integrem o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas?
É óbvio que, no cerne da reação ao discurso de Trump, estiveram o embaraço ante as críticas ao cultuado (porém miserável) legado obamista e o repúdio patológico a Israel. O país foi homenageado na fala do presidente americano, vergonhosa que é a forma como a ONU sanciona aquele Estado, democrático, e afrouxa a cobrança sobre, por exemplo, o Irã, cujo cumprimento do acordo nuclear (crime de responsabilidade chancelado pelo marqueteiro da paz Obama) não pode ser aferido pelas barreiras que aquela ditadura, esteio à barbárie na Síria, sustentáculo do Hezbollah, entre outros, e agente desestabilizador do Oriente Médio, impõe à fiscalização formal por organismos internacionais.
Mas tudo isso pode ser franja, espuma, coisa menor; e a reação histérica ao discurso de Trump decorrer verdadeiramente de ele haver falado, no plenário da ONU, em pátria, Deus e família. Oh!
Carlos Andreazza é editor de livros