⚠ AVISO: Contém spoilers
Em termos de premissa, “Cinderela” parece se encaixar no enorme conjunto de produções recentes que buscam reimaginar clássicos contos de fada e atualizá-los para o público atual. Não é preciso um olhar tão atento, porém, para compreender que esta obra, dirigida por Kenneth Branagh, se distancia positivamente do grupo por investir em alguns dos traços mais fundamentais da fábula original. Aqui, o tom não é cínico ou irônico como o de parte significativa destas adaptações, mas carregado de inocência e leveza, à semelhança da versão animada de 65 anos atrás, também produzida pela Disney.
Esse vínculo com a graciosidade intrínseca ao material é evidente desde os primeiros instantes de projeção, quando a protagonista (Eloise Webb, depois Lily James) é introduzida por meio de uma narração em off iniciada por “Era uma vez…” e acompanhada por planos de nuvens no céu azul – uma imagem que, de maneira inteligente, retorna no desfecho para definir o arco principal e transmitir sua mensagem. Sob esse aspecto, no entanto, cabe apontar um dos maiores problemas do roteiro de Chris Weitz: a insistência exagerada na moral da história.
Por um lado, o texto é extremamente econômico ao articular as bases da história e pontuar seus momentos de virada. Eventos como a morte da mãe de Ella (Hayley Atwell) e a decisão de seu pai (Ben Chaplin) de se casar novamente são tratados com discrição sem perder importância, sinal da habilidade do roteirista e de sua confiança na compreensão simples e imediata do que é apresentado em tela – o mesmo podendo ser dito das seguidas passagens de tempo, eficientes e nada bruscas.
Kenneth Branagh, à esquerda, no set de Cinderela
No entanto, a frase que move toda a trama e que define a postura da protagonista diante de suas adversidades – “tenha coragem e seja gentil” – é repetida à exaustão em diversas alturas, o que mais enfraquece a mensagem do que a ratifica. Soma-se a isso o fato de que a música é sempre tratada como catalisadora de emoções – uma decisão compreensível, mas que não é capaz de se sustentar tão fortemente nas composições pouco inspiradas de Patrick Doyle, mais derivativas do que alusivas a este universo de fantasia.
É interessante que o filme se torne agradável justamente por se ligar tão fortemente ao potencial da própria história que usa de base, mas que seus maiores méritos sejam resultado da capacidade de atualização daquele material. De maneira orgânica e natural, Branagh transfere o foco da ação, no segundo ato, para a vilã, interpretada por Cate Blanchett, decisão que faz sentido uma vez que se trata de uma trama claramente materna. Basta notar que Ella é cercada por figuras dessa categoria, tendo suas desventuras e conquistas vinculadas a elas – seu destino é alterado quando a mãe morre, sua miséria se completa quando a madrasta assume um posto de comando e seu alívio se dá graças à ação da Fada Madrinha (Helena Bonham Carter).
O vínculo com a graciosidade intrínseca ao material é evidente desde os primeiros instantes de projeção
O ponto central, aqui, é a eficácia o filme em construir a antagonista. Ela não é simplesmente uma fonte inesgotável de maldades, mas uma pessoa solitária, que se define pelos próprios infortúnios – viúva de dois maridos, sem renda própria, vive sozinha e é diariamente confrontada pela beleza e juventude de Ella. A atuação de Blanchett é capaz de oferecer tais contornos sem que a personagem principal seja sufocada por uma atuação “maior” que a dela, e o contraste entre as duas performances resulta nos momentos mais notáveis do longa: quando a Madrasta confronta a órfã no sótão, em meio à sombra e iluminada por apenas alguns feixes de luz.