[AVISO: Contém spoilers menores]
Ao menos no que diz respeito às reações imediatas a “Interestelar”, parece inevitável relacioná-lo tanto a obras tidas como canônicas no universo da exploração espacial quanto a projetos mais recentes que tratam ou esbarram nestes temas — de “2001: Uma Odisséia no Espaço” e “Solaris” a “Gravidade” e “Árvore da Vida”. A associação, porém, não parece ir muito além de algumas dezenas de planos digitalmente construídos de outras galáxias, tampouco resiste quando aprofundada.
É verdade que a fazenda em que vive o protagonista parece saída diretamente de um jovem Spielberg, assim como é justo afirmar que a proposta mais ampla (homem escolhido salvará o planeta), embora mais antiga que o cinema, tenha sido incessantemente remodelada desde seu surgimento, talvez com maior aproximação a este título na onda catastrofista dos anos 1980 e 1990.
A imersão de Christopher Nolan (e do co-roteirista, seu irmão Jonathan) neste espaço, contudo, revela mais sobre o próprio cineasta do que sobre a temática ou o gênero em que seu mais recente filme se insere. Desnudam-se suas maiores inconsistências, antes perdoadas em maior ou menos grau pelas mais diversas razões, como se aqui elas surgissem compiladas e intensificadas. O resultado é um projeto errático que aposta no gigantismo e acaba se tornando tão estabanado quanto um elefante numa loja de cristais.
Um projeto errático que aposta no gigantismo e acaba se tornando tão estabanado quanto um elefante numa loja de cristais
“Interestelar” tem em seu centro Cooper (Matthew McConaughey), um ex-piloto e engenheiro que, vivendo do campo graças à deterioração das condições de vida na Terra, é escolhido para liderar a missão que encontrará uma nova morada/planeta para a raça humana, na iminência da extinção. Viúvo há alguns anos (sua esposa é a quinta morta na filmografia de Nolan), ele decide deixar o casal de filhos para tentar salvar a humanidade, seguindo o que acredita ser seu destino.
Christopher Nolan no set
Derivam desta premissa estratégias que, naturalmente, demandam explicações (pseudo-técnico-científicas, mas que evidenciam o gosto do diretor-roteirista pela verborragia quadrada, raras vezes natural. O longa se engessa ao dedicar linhas e mais linhas para explicar conceitos ora pouco relevantes para mover a trama adiante (“os seres do bulk estão fechando o hipercubo”), ora simples demais para requererem qualquer explicação (a Lei de Murphy, desnecessariamente anunciada mais de uma vez ao longo de seus 167 minutos de duração).
O didatismo situa e identifica certas ideias, sobretudo no ato introdutório, quando apresenta os mistérios da casa em que Cooper vive e a insistência de sua filha (Mackenzie Foy) em desvendá-los, mas a seguir nunca vai além de uma série de diálogos/frases de efeito enfadonhas e desinteressantes. É como se, tendo em mãos um jogo de tabuleiro recém-criado, Nolan preferisse passar horas lendo o manual de instruções em vez de simplesmente jogá-lo.
Até mesmo os momentos em que o longa se assume como um jogo (em um momento-chave, já em sua segunda metade, o joystick da nave é colocado em primeiro plano) ou opta pela simplificação absoluta (uma trajetória complicadíssima é resumida a três rabiscos de Cooper num quadro branco) são prejudicados pela falta de consistência da narrativa.
Daí parte sua falha mais grave: o fracasso em lidar até mesmo com os temas mais acessíveis e comuns (embora não menos ambiciosos) que a compõem. Os laços familiares das figuras em cena e as ideias de fé e amor são sempre resgatadas aos solavancos em meio a discursos constrangedores dos quais pouco se extrai. O tom é quase enciclopédico e pouco condizente com a máxima segundo a qual “o amor é a resposta”, uma espécie de propulsor não-científico para a resolução dos conflitos da trama.
“O amor é a resposta” funciona como uma espécie de propulsor não-científico para a resolução dos conflitos da trama
Incomoda que essa busca por identificação seja tão estéril e inumana, e que as sequências de maior humanidade surjam da interação dos astronautas com máquinas (os robôs que os acompanham na missão e as telas em que são reproduzidas as mensagens de seus parentes deixados em solo firme).
O problema é que não parece haver tentativa de metaforizar tal aspecto – como se a decadência da humanidade e seu isolamento no espaço estivessem sendo substituídas por relações com computadores -, mas apenas uma incapacidade em lidar com a própria humanidade, o tema que lhe é mais caro, optando por racionalizar todas as frentes – da física quântica ao sentimento de altruísmo – como num manual.
É inquietante, por exemplo, que a relação entre Murph (Jessica Chastain) e Tom (Casey Affleck) se desdobre no ato final somente em uma disputa entre órfã crente e órfão descrente, posto que é razoável assumir que algo além disso movimentou a evolução dos personagens durante o salto temporal assumido pelo filme e apresentado pelos seus depoimentos frente à câmera quando davam como morta sua figura paterna. Ou, ainda, que a paixão de Amelia (Anne Hathaway) por um companheiro desaparecido, capaz até de dar viés a suas decisões por princípio mais profissionais, seja tratada com tamanha impessoalidade, como se merecesse apenas uma nota de rodapé desinteressada já no desfecho da trama.
Tal misto de racionalização e incompletude é também incompatível com o discurso em que seus personagens se ancoram: se de um lado Cooper e sua colega diferenciam a raça humana por sua capacidade de improvisação e imprevisibilidade, de outro câmera e direção extraem pouco de seus atores, inclusive daqueles cujas participações mais deveriam surpreender – é o caso de John Lithgow, inócuo, e de Michael Caine, mais professoral do que inspirador.
Apegando-se às saídas mais óbvias e desperdiçando uma construção um tanto zelosa de cenários e ambientes (dos quartos empoeirados da fazenda à frieza da nave espacial), Nolan permite que suas criações ajam apenas para dar origem a seguidos plot twists, atuando e sendo filmadas de forma quase mecânica.
O mesmo pode ser dito do trabalho de Hans Zimmer, frequente colaborador de Nolan, que apesar de arriscar a utilização de um ou outro traço eletrônico, próximo da relação homem e máquina que é uma constante no espaço, retorna ao lugar-comum na tentativa de emular Richard Strauss e provocar algum senso de grandiosidade.
Apegando-se às saídas óbvias e desperdiçando uma construção zelosa de cenários, Nolan permite que suas criações ajam apenas para dar origem a plot twists
No fim das contas, “Interestelar” deixa a impressão de uma reunião de elementos potencialmente interessantes, mas que decepciona pela inabilidade de seu realizador em trabalhá-los em conjunto ou, ao menos, de conferir a eles, individualmente, a importância devida.
Seus pontos positivos, como o trabalho de Hoyte van Hoytema com cores e texturas e as bem filmadas sequências de voo no espaço, são sufocados em prol de uma rigidez excessiva e de decisões irregulares que miram alto e aleatoriamente e acabam por desviar o filme do próprio curso – ao ponto de parecer que ele sequer possuía um.
Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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