[AVISO: Contém spoilers menores]
Há vários elementos a se elogiar em “Invencível”, segundo longa-metragem dirigido por Angelina Jolie, indicado em três categorias (fotografia, mixagem e edição de som) no Oscar. O filme, porém, revela uma cineasta ainda em processo de formação, com certos vícios e manias que o desviam do propósito geral de construir um melodrama que honre a história e a memória de Louie Zamperini (Jack O’Connell), atleta norte-americano capturado por japoneses após um acidente de avião durante a Segunda Guerra Mundial.
O primeiro ato, além de apresentar seu protagonista como uma figura forte, leal e determinada, situa a trama historicamente através de menções pontuais – à cantora e compositora Hellen Miller e ao corredor Jesse Owens, por exemplo. Nota-se certo preciosismo do roteiro (escrito a oito mãos, com base no trabalho de Joel e Ethan Coen e amparado no best-seller de Laura Hillenbrand), que por vezes se prende a essa recriação temporal e, talvez por isso, hesita em mergulhar em seus fatores mais promissores: um certo componente religioso e a tentativa de expropriação da humanidade de seus personagens centrais em época de conflito.
O filme revela uma cineasta ainda em processo de formação, com certos vícios e manias que o desviam do propósito geral de construir um melodrama que honre a história
A ideia de divindade é uma constante que se manifesta sobretudo nos espaços de transição da trama, em seus pontos de virada, sobretudo em planos plongée filmados com enorme qualidade por Roger Deakins. Somam-se às citações mais evidentes, como as preces feitas instantes antes do primeiro acidente e a promessa de entrega a Deus no caso de sobrevivência, alguns bons sinais visuais dessa evocação religiosa: a chuva que cai do céu e abençoa Louie, Phil (Domhnall Gleeson) e Mac (Finn Wittrock) após semanas à deriva no oceano e a cena em que o protagonista carrega sua cruz, que não por acaso estampa o material de divulgação do filme, já nos instantes finais de projeção. Mais indiretamente, a descida ao inferno quando o grupo de aliados é enviado ao segundo campo de concentração e a passagem pelo corredor da morte, tendo a luz ao fim do túnel, também compõem bem esse traço espiritual da narrativa.
Angelina Jolie no set
O trabalho do diretor de fotografia é ainda fundamental para a construção de Zamperini (além da interpretação de O’Connell, antes ótimo em “‘71” e elogiado por “Starred Up”) como um personagem único, digno de um retrato tão intenso e carregado de emoção. São não apenas esteticamente bonitos os planos em que o rapaz emerge à superfície, se depara com o navio inimigo e observa a destruição e o incêndio causados pelos bombardeios de seu próprio país, mas também carregados de sensibilidade e presença de significado de que carecem outros segmentos do filme.
Jolie e seu seus montadores apostam na tese de que o tempo no mar é tão importante como aspecto definidor quanto o período em terra firme. O equívoco, porém, é a preocupação excessiva com a produção de um suspense que só serve a distrações bobas, tais como a queda de uma bandagem cheia de sangue na água, prenúncio de um ataque de tubarões que mais atrapalha o ritmo da narrativa do que o intensifica.
Em termos de condução, “Invencível” também sofre pelo recurso a flashbacks em momentos-chave. O recorte temporal – o período em que Louie ficou condenado à própria sorte no Pacífico – parece acertado, mas os paralelos traçados entre a brutalidade da guerra e as competições de atletismo jamais soam naturais. A crítica vale tanto para o instante mais óbvio, quando o jovem teme pela própria vida e o espectador é conduzido abruptamente ao seu recorde olímpico, quanto pelas lembranças mais dispersas, como o apoio dos companheiros frente à humilhação e às provações sofridas por ele, similar aos gritos ouvidos das arquibancadas do Estádio Olímpico de Berlim, nas provas de 1936.
Em termos de condução, “Invencível” também sofre pelo recurso a flashbacks em momentos-chave
Se o filme tem relativo sucesso ao emular o fim de uma prova de fundo, intensificando seu ritmo no fim, o processo que conduz a este desfecho não é tão regular. Isso se deve principalmente à presença de um antagonista tão estereotipado, Watanabe (Takamasa Ishihara), que aposta unicamente no overacting para causar impacto em cena.
Até mesmo algumas rimas existentes no roteiro (“Tenho uma notícia boa e uma notícia ruim” é frase que surge em dois pontos distintos e igualmente importantes) são enfraquecidas pela interação entre vilão e protagonista, sintoma de uma cineasta menos compreensiva – de certo modo, até menos madura – do que sua estreia na direção de ficção, “Na Terra do Amor e do Ódio”, retratando um capítulo particular da Guerra da Bósnia, parecia indicar.
O apego à figura de Louie transforma tanto os japoneses, por quem ele nutria admiração, quanto seus colegas aliados, que caminharam ao seu lado no conflito, em figuras sem rosto, absolutamente rasas e desprovidas de qualquer impacto emocional – exceção feita a Phil, presente em uma das sequências mais interessantes, quando tudo o que se vê é a reação do colega à sua agressão, não o fato em si, recurso já utilizado, guardadas as devidas proporções, por nomes como Werner Herzog, em “O Homem Urso”.
O último ato redime o filme de alguns de seus problemas, com um olhar contemplativo e de admiração de Jolie pelo seu protagonista
Deste modo, se há uma discussão sobre humanidade no filme, ela é curiosamente promovida pela relação dos personagens com a natureza, pelo contraste entre a implacabilidade do mar e a crueldade consciente dos homens. É uma pena, porém, que Jolie carregue demais no tom e o longa invista tanto em uma trilha automática e excessivamente manipulativa, composta pelo usualmente competente Alexander Desplat, capaz de quase apagar a serenidade de uma história contada por Louie no bote e a posterior morte de um de seus companheiros.
O último ato, porém, resgata esse debate com habilidade e redime o filme de alguns desses problemas, muito embora o epílogo produza um discurso bastante carregado, um tom acima do restante da produção. O contato dos aliados prisioneiros com a destruição provocada pelos seus próprios exércitos, a reação de um deles ao anúncio da morte do presidente Franklin Delano Roosevelt e a sequência de sobreposições de imagens de Louie caído são capazes de promover a almejada humanidade da história, reorganizando as peças que, anteriormente, a haviam erguido de maneira inconstante.
A trajetória pessoal ganha força e finalmente dá vazão, mais do que a uma preocupação errática com a contextualização histórica ou a distrações desnecessárias, ao olhar contemplativo e de admiração de Jolie pelo seu protagonista – e seu intento, mesmo que parcialmente completo e cercado por fatores problemáticos, revela-se verdadeiramente merecedor dessa série de elogios.
Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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