Mitos de origem são constantes nas sociedades humanas. Assim como suas variáveis e, claro, contrapontos. Crianças escolhidas, representantes deídicos profetizados por séculos, reencarnações das deidades caminhando sobre a Terra vivem lado a lado com seus algozes, com seres malignos enviados com a única missão de destruir a vida e instaurar o caos.
Ridley Scott jogou um holofote poderosíssimo na direção das sombras que tão habilmente criou em 1979, e a claridade pode ser assustadora.
Bem e Mal ainda são as duas maiores variáveis, independente de quanta “área cinzenta” a cultura moderna insista em empurrar goela abaixo, afinal de contas, vida sempre vai se opor, pelo menos temporariamente, a morte. E criador sempre vai antagonizar sua criatura. E a coisa só piora quando encaramos as relações familiares, conflitos de gerações e a maior de todas as jornadas: o jovem que se torna pai e vê, muitas vezes inerte, a revolta do filho atingir níveis extremos até a inevitável conclusão dramática.
Ridley Scott vive os dois papeis dessa dicotomia criativa em “Prometheus”, seu esperado retorno à Ficção Científica.
Quem vence a briga: o pai ainda repleto de perguntas ou o filho curioso e irresponsável arriscando tudo por uma única pergunta?
A resposta está na origem de tudo, tanto da vida quanto do universo de “Alien”.
Ridley Scott no set de Prometheus
Sugerir questionamentos e postular teses, por vezes assustadores, sempre foi um dos grandes atrativos da Ficção Científica. Fomos ao espaço, ao centro da Terra, às entranhas do corpo e aos labirintos da mente por conta desse gênero nativamente desprovido de limites. Boas ficções fazem pensar sobre o amor, como em “O Homem Bicentenário”, ou sobre o futuro de nossa raça e de nossas criações, como em “Matrix”, logo nada melhor do que encarar essa natureza inquisitiva com bons olhos, especialmente num momento de engessamento criativo e de lideranças hollywoodianas cada vez mais decididas a nivelar por baixo. Esse é um dos pilares de “Prometheus”, já invocativo pela referência ao mito grego do “homem buscando se igualar aos deuses ao roubar o fogo do Olímpo”, e igualmente provocativo em suas teses sociais e religiosas.
Quem somos? Até onde estamos dispostos a ir? Qual preço é aceitável? E, acima de tudo, Estamos Prontos?
Muito se pergunta e pouco se responde no roteiro de Damon Lindelof (“Lost”) e mesmo a única resposta é ousada. “Prometheus” foge da batida regra da “revelação no final” e joga a bosta no ventilador logo de cara, dando sua resposta e abrindo espaço para analisar as reações provocadas por ela em seus personagens, humanos ou não.
Afinal, o androide David é instrumental na trama em mais um grande trabalho de Michael Fassbender. Se sabemos que, no universo Alien, confiar nos autômatos é um erro, também sabemos que, invariavelmente, as interpretações serão memoráveis. Vide Ian Holm e Lance Henriksen. Idolatra de “Lawrence da Arábia” e em busca de sua própria alma, ou razão no universo, David mescla o melhor e o pior da Humanidade.
“Imagine a mente de uma criança, deixada sozinha a mercê de sonhos, filmes e todo tipo de pesquisa por quatro anos, em solidão, traçando suas próprias teorias”, disse Fassbender, quando nos encontramos em Anahein, há alguns meses.
“As ramificações são infinitas e isso vai refletir em suas ações; assim como os humanos, ele também tem suas perguntas e quer algo”.
Começar com a revelação é uma estrutura complicada de se trabalhar. E, de certa forma, antagônica a “Alien – O Oitavo Passageiro”. No primeiro filme, Ridley Scott foi claustrofóbico e preciso na análise do instinto de sobrevivência, tanto do alienígena quanto da Tenente Ripley. Demos cada passo com Ripley, sentimos cada nota da trilha de Jerry Goldsmith e sentimos, numa grande experiência coletiva, o alívio com a vitória da nossa campeã. Foi um exercício de compartilhamento social, de sensações espelhadas, de identificação total com a mistura de incapacidade e crescimento forçado para sobreviver.
É um mito da caverna às avessas, no qual o mistério se revela quando alguém ilumina as sombras.
Basicamente, ao escapar do confronto, Ripley ganha o direito de renascer e sua trajetória facilmente se equipara à natureza de diversas espécies colocadas contra seus predadores tão logo respira pela primeira vez. Gosto do tratamento a esse conceito dado por Stanislaw Lem, em “Solaris” (assim como a versão de Steven Soderbergh), quando faz a pergunta: Como reagir se sua primeira ação como ser vivo e consciente é matar para ter o direito de continuar a viver? Lutar. E ponto. Ripley luta e sobrevive, nesse novo drama, acreditamos ser os senhores, aqueles que vão apontar o dedo, dar as ordens e perguntar.
“Prometheus” poderia muito bem se chamar Icarus, pois da mesma forma como o homem que tentou tocar o Sol, seu destino foi ser subjulgado pela força dos deuses. Ao buscar igualdade e, até mesmo, comando sobre os criadores, a criatura se vê isolada, alienada e imersa numa realidade incompreensível, onde suas habilidades são ineficazes e suas perguntas são vazias; desnecessárias. “Prometheus” explora essa dinâmica, do ser humano como peça diminuta num cenário desconexo e cuja compreensão está além de sua capacidade.
“Prometheus” encontrará seu espaço e sobreviverá a seus críticos, propondo questionamentos e desafiando mentes.
Balancear a ousadia de confrontar um deus e a inexorável limitação física, sensorial e emocional da Humanidade é impossível, pelo menos até nossa raça dar um salto social como o proposto por Gene Roddenberry em “Jornada nas Estrelas” (especialmente na Nova Geração). Até segunda ordem, claro que deixamos de ser o hominídeo de Arthur Clark e Stanley Kubrick, mas ainda somos próximos demais do sujeito tribal idolatrando a Lua, e seus mistérios, na “Guerra do Fogo” de Jean-Jacques Annaud. E é esse homem que Ridley Scott lançou ao espaço. Esse ser deslumbrado vai confrontar seu criador. As respostas vão desagradar.
Além de provocar consequências extremas pela irresponsabilidade de exploradores com muito arrojo e pouca precaução, essa expedição darem vida a algo capaz de extinguir nossa espécie e criar mais uma cena emblemática para o cinema, quando Elizabeth Shaw (Noomi Rapace) luta pela sua vida no momento de desespero, coragem e dor imensurável.
A crítica à natureza destrutiva do homem é clara, também como seu papel problemático como agente transformador, sempre pleiteando as “melhores intenções” e, invariavelmente, subvertendo tudo à sua volta para atender a seus desejos. Os personagens de Prometheus encontram-se num momento de revés, pois, ao entrarem na gigantesca estrutura alienígena, deixam de ser agentes transformadores e tornam-se, imediatamente, nas coisas a serem transformadas. É um mito da caverna às avessas, no qual o mistério se revela quando alguém ilumina as sombras.
O filme é contemplativo, transcorre em sua própria velocidade sem atender à expectativa do público para mais, mais e mais.
Ridley Scott jogou um holofote poderosíssimo na direção das sombras que tão habilmente criou em 1979 e a claridade pode ser assustadora. Não torcemos pela vitória, somos incomodados por nossos próprios erros, egocentrismo e convicções. Somos tirados da zona de conforto com a resposta à grande pergunta (vou omitir referências claras por conta de spoilers) e isso, mesmo hoje em dia, incomoda. Pessoas não gostam de ver suas certezas religiosas ou crenças serem rechaçadas, questionadas ou desacreditadas com tanta petulância e velocidade. O público é acuado, logo, provocado a reagir. Por isso o ponto de não-retorno de “Prometheus” é tão decisivo. Aceitar a postulação de Scott faz parte do jogo, mas para isso é preciso estar disposto a encarar seu criador e pagar o preço.
Dele é a mão que cria. Seja o estilo e velocidade proposto por Ridley Scott, seja a misteriosa razão que provoca a criação da vida nos primeiros minutos de estonteante beleza de “Prometheus”. Dele é a mão que pune. A decisão de voltar a esse universo foi do diretor, que trocou a dinâmica sensorial pela grandiosidade do universo e o minimalismo dos agentes transformadores (“Grandes coisas tem começos diminutos” – David) ou do próprio criador arrependido ou cheio de ódio pelo sucesso excessivo ou fracasso retumbante de sua criatura.
O filme é contemplativo, transcorre em sua própria velocidade sem atender à expectativa do público para mais, mais e mais. Daí a justa comparação a “A Árvore da Vida”, de Terrence Mallick. E isso faz sentido. A vida também é lenta e acontece a despeito de nossos desejos. Tentamos transformar tudo, mas não somos mestres do tempo. Como diria Gandalf, “precisamos decidir o que fazer com o nosso tempo”, não como encontrar mais tempo ou acelerar o andamento das coisas. E Ridley Scott transporta esse elemento para “Prometheus”. Ele recria a vida numa situação tão próxima de seu fim. É como se ele traduzisse o conceito de dobra espacial para uma equação matemática, colocando início e fim tão próximos que as chances de colisão, ou anulação, aumentam a tensão e colocam tudo em risco.
É outro tipo de suspense, mas não uma nova Ficção Científica. Nisso Ridley Scott não ousou (deixando sua inventividade para os uniformes, capacetes com campo de visão total, a belíssima nave Prometheus e a tecnologia da Weyland). O roteiro de Lindelof transborda obviedade em alguns pontos, criando o clássico “set up / pay off”, ou seja, arma a situação para depois utilizá-la na conclusão (o casulo de sobrevivência, a máquina cirúrgica, os sonhos de Elizabeth Shaw), e apresenta falhas. Fato.
Entretanto, a eficiência técnica e o subtexto – há muito que ser visto, interpretado e inferido – incorporado a Prometheus supera o desejo do espectador óbvio ao sentar na cadeira disposto a montar um quebra-cabeça, do jeito que ele acha que deve montar, em vez de aceitar a obra pelo que ela é. A expectativa era inevitável, assim como sua quebra absoluta. Prometheus pode ser um grande filme se visto pelo que é, não pelo que torcemos tanto para que fosse.
Clássicos não nascem do dia para a noite. Eles são construídos. “Prometheus” encontrará seu espaço e sobreviverá a seus críticos, propondo questionamentos e desafiando mentes, maravilhando pelo visual e provocando pelo conteúdo.
Não diria que Ridley Scott fez de novo, nem foi sua intenção, ele mesmo me disse que “voltar ao gênero foi libertador, pois pode fazer o que bem entendeu e não ficou se preocupando com cada detalhe do primeiro filme [quem fez isso foi Lindelof]”, mas pode garantir que ele fez suficientemente bem para se destacar em meio a tanta oferta, num mundo novo em relação a “Alien” (mídias sociais, milhares de ‘críticos’, marketing excessivo, feira livre instantânea de opiniões, e com o gênero que ajudou a definir deveras usado, abusado e reinventado trocentas vezes), e ser lembrado.
“O gênero é um canal, não uma finalidade. Hoje posso fazer estar voltando a fazer Ficção Científica, mas sempre fiz filmes, onde eles se encaixam é algo que não define o objetivo”.
Curioso notar que a nova dinâmica criada pelo sucesso desse estilo nas bilheterias transformou sua essência: filmes, ou séries de FC, nasceram como nicho, eram ignoradas e ridicularizadas pelo mainstream e por quem não gostava; hoje em dia, nós, os aficionados e adoradores, somos os primeiros a atirar asteroides dignos dos insetos de Robert Heinlein na direção de tudo e todos. O sucesso criou um mecanismo de falha compulsória embutido e, infelizmente, apertamos o botão ao primeiro sinal de problemas.
Em alguns anos, olharemos para trás com nova perspectiva. Mas com as mesmas perguntas. Fica a cargo das novas gerações redescobrir as perguntas, imaginar respostas e descobrir se, naquele momento, seremos dignos do sacrifício de Prometeu, cuja chama roubada nos guia enquanto seu sofrimento nunca acaba.
Nota: 9/10
Post originalmente publicado no Brainstorm #9
Twitter | Facebook | Contato | Anuncie