[AVISO: Contém spoilers menores]
Os irmãos Andy e Lana Wachowski parecem ter um plano bem claro e ambicioso em seu novo filme: criar um universo inteiro para uma ópera espacial a partir de uma folha em branco. Imersos em uma era de grandes franquias, adaptações sem fim e filmes desde o início concebidos para gerar subprodutos, os cineastas optam por seguir um caminho distinto, mas igualmente apegado a referências passadas. Assim, “O Destino de Júpiter” é fruto de um processo de criação essencialmente original, mas que abraça diversas convenções do subgênero para inserir traços pontuais e muito particulares de sua própria filmografia.
O apreço visual da dupla segue em ótima forma. Se algumas maquiagens, atuações, criaturas e fantasias se aproximam do ridículo, de elefantes que pilotam naves a reptilianos de armadura, isto se dá por uma opção consciente pelo cartunesco e o kitsch, como se a última frase dita pela protagonista antes do letreiro inicial de certa forma sinalizasse, com um aceno ao espectador, o que vem a seguir – “total bullshit”. Nesse sentido, o que o filme oferece é uma ideia de ação que dialoga com os aspectos mais cinematográficos de videogames.
O filme oferece uma ideia de ação que dialoga com os aspectos mais cinematográficos de videogames
A ação frenética, em certos momentos confusa, é fortemente marcada por uma imensidão de cores, luzes, raios e faíscas que remetem a “Speed Racer” e alguns segmentos de “A Viagem”/“Cloud Atlas” – com a diferença de existir em 3D, o que se torna fundamental para a obra graças a um trabalho de composição e iluminação bastante acertado.
Há pelo menos duas sequências, na Terra e na última missão, que justificam perfeitamente o uso da tecnologia, sobretudo associada ao slowmotion que diretor e diretora tanto dominam e que parecem ter aperfeiçoado, ainda que perdido em termos de impacto, desde a trilogia “Matrix”. Em consonância, o trabalho sonoro é primoroso e segue a mesma intensidade da ação, tanto pela ótima trilha de Michael Giacchino quanto pelo volume de sons que sinalizam a destruição dos ambientes pelos quais os personagens passam.
Os Wachowski no set
É também interessante que planos longos, não necessariamente de coreografias de luta, sejam encaixados nas sequências de combate e perseguição, o que a um só tempo, de certa forma, expande e subverte uma percepção de que o gênero precisa se apegar a seguidos cortes para criar a impressão de movimento. O elogio vale, sobretudo, para a breve cena do terceiro ato em que a personagem principal é elevada aos céus, transformando em imagem a ascensão do título do filme.
Donos de recursos quase inesgotáveis em termos de narrativa, tanto os seus quanto os emprestados de suas referências, os Wachowski investem em uma premissa simples. Jupiter (Mila Kunis) é uma terráquea insatisfeita com sua vida que, num estalar de dedos, se descobre a rainha do universo e passa a ser caçada pela dinastia Abrasax, composta por três irmãos – Kalique (Tuppence Middleton), Titus (Douglas Booth) e Balem (Eddie Redmayne) -, cada um deles dono de um plano mais danoso para seu futuro e o futuro da humanidade. Em seu caminho, surge Caine (Channing Tatum), um licomutante (metade homem, metade lobo), que de imediato se torna seu guardião e interesse amoroso.
A construção da protagonista é interessante: ela é órfã de pai, dividida entre Rússia e Estados Unidos e trabalha limpando casas de ricos em Chicago. A transição dessa condição para herdeira do universo e dona do planeta Terra ocorre não apenas porque ela é “a escolhida”, mas por uma série de opções próprias – em determinado momento, ela decide arriscar tudo, contrariando a opinião de Caine, e afirma “Não é sua decisão”.
Donos de recursos quase inesgotáveis em termos de narrativa, os Wachowski investem aqui em uma premissa simples
No limite, porém, o caráter empoderador da personagem sucumbe à trama de redenção de herói e heroína, quando o rapaz a salva novamente de uma queda, logo após ela derrotar, sozinha, o principal vilão. Aqui, a sensação é de que alguns dos rumos tomados pelo filme podem não ter sido diretamente decorrentes desse processo de apropriação e (auto)referenciação, mas talvez de um esgotamento criativo para segmentos particulares, levando os cineastas a recorrer até mesmo aos clichês que, quando ausentes, os diferenciavam de outros produtos da mesma categoria.
Observação semelhante vale, sob outra perspectiva, para a construção física do universo em questão. A arquitetura de naves e cidades e a geografia dos planetas é interessantíssima, mas inexiste para além de um grupo de planos de transição que apenas estabelece o próximo palco da ação.
As diferentes estruturas de naves e as distintas formas de organização daquelas sociedades sofrem pelo problema de localização espacial do filme, que pula de desafio em desafio, de verso em verso, sem que haja maiores referências acerca daquela movimentação dos personagens. Não se trata de um pedido por maior detalhamento, sobretudo por se tratar de um longa repleto de diálogos explicativos, mas um comentário a respeito da falta de propósito maior de tantos desses planos.
É fascinante a habilidade de Lana e Andy ao conciliar a batalha pessoal de sua protagonista com pretensões sociológicas e filosóficas
A transição é mais eficiente, por exemplo, quando a câmera registra uma abelha de perto, instantes antes de a protagonista conhecer o paralelo entre sua condição de majestade e uma colmeia. Relação similar aparece em seguida, no momento em que os Wachowski acenam com a ideia da colheita (dona de significado específico no filme) ao colocar seus personagens para lutar em meio a uma plantação, antes de levá-los ao espaço. A dupla parece confortável ao articular rimas dessa natureza, e mais ainda ao se permitir certos desvios de curso.
Exemplo positivo é a sequência em que Balem vê em hologramas o passado – Caine salvando Júpiter – em uma câmera extremamente lenta, como se os cineastas revelassem seu segredo por meio da reencenação, confiantes em não apostar no realismo por conveniência típico de alguns de seus colegas de Hollywood. Contrariamente, o alívio cômico e de leveza ao explorar a burocracia de outros planetas não funciona, apenas prolongando o filme por mais alguns minutos e o distraindo de seu intento.
Talvez mais problemática seja a articulação das consequências na trama. Durante o segundo ato, em especial quando interage com Titus, Júpiter parece deslocada de Caine, sem reagir de imediato ao seu desaparecimento, e desinteressada no estado de sua família, que havia deixado na Terra. É compreensível que a estrutura adotada leve o filme a saltar de desafio em desafio, mas a rapidez com que cada um deles ganha em importância para ser logo esquecido atrapalha a negociação de expectativas.
Apesar de existir como produto, “O Destino de Júpiter” se configura como um projeto autoral e fundamentalmente pessoal
O terceiro ato, porém, supera boa parte dessas falhas ao recolocar a protagonista em seu rumo. Acima de qualquer convenção, é fascinante a habilidade de Lana e Andy ao conciliar a batalha pessoal de sua protagonista com as pretensões sociológicas/filosóficas que permeiam toda a discussão sobre a vida humana como uma simples mercadoria – sobretudo em um filme que, apesar de existir como produto, se configura como um projeto autoral e fundamentalmente pessoal.
Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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