TENDÊNCIA Nº 16: VALOR.
Para encerrar, pelo menos por enquanto, essa longa história sobre a nova forma de contar histórias, é preciso levar em consideração o aparelhinho que certamente vai mudar tudo: o computador-prancheta. Ele pode ser um leitor de eBooks, um Kindle, um iPad, um tablet, um netbook ou qualquer coisa bizarra inventada no Japão. Até mesmo um daqueles protótipos que a Microsoft inventa de vez em quando só para mostrar que a experiência do usuário não é a praia deles serve.
Tsk, tudo errado. Nem sei por onde começar. A caneta? Ser dobrável? Ter o pior do computador com o pior do vídeo portátil? Melhor deixar pra lá.
Pouco importa o que digam as campanhas de marketing e os “especialistas” da imprensa, não há motivos para que esses aparelhos sejam simplesmente livros ou vídeos portáteis, quando podem ser muito melhor aproveitados. Como estão conectados, são interativos e intuitivos, eles podem expandir a narrativa ao proporcionar experiências complementares.
Isso dá o que pensar. Agora que muitos já se acostumaram com o entretenimento multitarefa, fica difícil criar algo interessante a ponto de demandar concentração. Você já viu alguém assistindo um vídeo no laptop , vestindo fones de ouvido enquanto joga um videogame no celular (ou seja, com os ouvidos em uma tarefa e os olhos em outra como se fosse a coisa mais normal do mundo)? Pois isso é só o começo.
Celulares, a propósito, estão entre as próximas tecnologias a serem usadas pelas narrativas transmídia. Suas telas eram pequenas demais para proporcionar uma experiência transparente ou mesmo confortável em entretenimento passivo, por isso nunca foram levados a sério como complementos da TV. Mas quando se sai à rua a história é outra. O ecossistema de dados contextuais proporcionado pelo conjunto de celular + GPS + aplicativos de realidade aumentada + ARGs promete coisa boa nos próximos anos. Se você não leva alguma dessas tecnologias a sério, aguarde: elas ainda estão engatinhando.
Não é preciso ser mais criativo do que um golden retriever para se perceber como isso pode ser feito. É só ver como isso vem sido feito há tempos, sempre que um personagem fictício habita o mundo real. Que o diga o Museu Sherlock Holmes, localizado no nº 221B da Baker Street.
Essas formas de consumo-fetiche de modus vivendi são comuns. A Star Route, a Revista Caras e até mesmo um roteiro que siga as cenas paradisíacas do Senhor dos Anéis pela Nova Zelândia ou um que siga o caminho do Código da Vinci em Paris são formas de desdobrar a história para novos patamares de experiência. A princípio, tudo isso é muito legal. Mas, como tudo na vida, a transmedia storytelling também tem seu lado obscuro. Viver a vida dos outros ou se enfronhar demais em uma história pode se tornar uma forma de alienação.
O ser humano é, em essência, um control-freak. Boa parte de avanços tecnológicos, como boa parte do estrago que fazemos uns aos outros e ao planeta, vem de uma enorme insatisfação que se tem com o estado das coisas. Para esse tipo de personalidade, a informação customizada e adaptada às preferências particulares parece uma bênção. Não é. Ao mimar o público e permitir a ele o consumo de qualquer tipo de informação, elimina-se o confronto e, com ele, qualquer espécie de aprendizado. Assim, corre-se o risco de fortalecer preconceitos e hábitos, uma vez que é tremendamente confortável nutri-los.
Para se aprender a ouvir boa música é preciso tempo e paciência. Para se desenvolver senso artístico e estético também. Ao permitir o controle sobre a experiência, as tecnologias digitais podem levar a crer que um senso crítico é exercitado, quando o que acontece é exatamente o contrário. Ao enfatizar os desdobramentos da narrativa, em vez de perguntar qual é o aprendizado que resulta dela, algumas perguntas difíceis são evitadas e a história se transforma em um entretenimento vazio, um Doritos mental.
Por essa você não esperava, hem tio Asimov? As máquinas dependem de gente, e gente tem uma preguiiiiiça…
Diz-se que o que amarra todas essas tecnologias é o conforto e a satisfação das necessidades. Mas de que necessidades se fala quando se trata de uma história? Em um mundo que se pode exercitar um controle sem precedentes sobre o que se vê e escuta, é possível evitar conscientemente idéias, sons e imagens com as quais não se concorda ou de que não se gosta. Quanto maior o controle, menos preparado o público está para ser surpreendido. E assim se torna incapaz de aceitar qualquer coisa além de seus hábitos e preconceitos.
Com suas necessidades satisfeitas, o consumidor de cultura é radicalmente e perigosamente mimado, o que encoraja a polarização, radicalização e, naturalmente, a alienação. A antiga “aura” da arte vive agora nos aparelhos tecnológicos. Esse novo ritual em busca do completamente personalizado não é arte. Seu culto desmedido não é religião. É fetiche. E, ao contrário da arte e da religião, que encorajam a transcender a experiência de vida, o fetiche fixa as pessoas obsessivamente a alguns produtos. Nesse processo, as escraviza. Máquinas não fazem promessas nem têm demandas. É o espírito humano (a que a tecnologia está a serviço) que as têm.
À medida que o cenário se torna mais complexo, é natural uma busca por maior riqueza de informação, que se manifesta pela demanda por aprendizado. Mas aprender, vale lembrar, não é um verbo intransitivo. O que se procura aprender (e para que finalidade) é o que determina a capacidade de compreensão e trânsito pelo mundo. O fanático por estatísticas de futebol, o nerd que sebe TUDO sobre um filme ou série e aquele que conhece a fundo a vida de alguns atores, alguns executivos ou celebridades em geral é um colecionador, não um erudito. Ele não tem nada de sábio, nem pode transferir as informações adquiridas para outras áreas. É um CDF bitolado sem valor.
Narrativas complexas demais, sem desdobramentos aplicáveis no cotidiano, desmontam as bases da educação, que é são a inquietude, o confronto e a surpresa. Um sistema fechado, complexo demais para que sua redoma de vidro seja identificável, esfarela a estrutura de valores das fábulas, plastifica a percepção e transforma a descoberta em uma anestesia controlada, inofensiva, desinteressante, pragmática, antisséptica.
No Japão há o fenômeno Otaku, centrado em personagens, action figures, animês e algo maior do que uma simples alienação: é uma total rejeição da sociedade, porque ela contraria os desejos mimados de um usuário/leitor/consumidor domesticado e infantilizado. É uma ferramenta emburrecedora, que remove das pessoas o espírito crítico e a visão global. Já se vê isso nos que ficaram magoadinhos porque Avatar não era de verdade e nos viciados em MMORPGS, vem mais por aí.
O Futuro nem sempre é bom. Hoje podemos estar a caminho de uma desconexão intensa e coletiva. Sempre tive muito mais medo do Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley do que do Big Brother do Orwell. Hoje as duas distopias parecem ter seu pedaço de verdade.
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