“Se uma Inteligência Artificial Consciente entrar em atividade, instantaneamente, ela será mais inteligente que a reunião da mente de todos os homens que já viveram na Terra”. Esse é um dos conceitos de “Transcendence”, longa-metragem de estreia do fotógrafo Wally Pfister na direção, estrelado por Johnny Depp e saco de pancadas generalizado da mídia. Esse é, provavelmente, o filme mais profundo e com potencial transformador da temporada, mas também é o menos visto por uma série de fatores. A maior delas: o roteiro.
Abordar os temas de “Transcendence” não é nada fácil. Inteligência Artificial, os efeitos da hiper-conectividade moderna, os limites e os medos da mente humana, e uma série de decisões transformadoras em escala global podem ser a receita de um marco da Ficção Científica ou de mais uma boa ideia que caiu no esquecimento por problemas na realização. Adicione à equação dois novatos nas posições-chave: direção de Wally Pfister, o diretor de fotografia predileto de Christopher Nolan (que produziu o filme) e o roteirista Jack Paglen, em seu primeiro roteiro de longa-metragem.
O filme parte do princípio que um gênio da tecnologia criou uma IA capaz de transformar a Humanidade, o que, imediatamente, leva à memória das leis da robótica de Asimov e do confronto entre máquina e homem, mas, rapidamente, opta por uma narrativa mais contida e baseada numa mescla de história de amor e incapacidade de lidar com a perda.
O diretor Wally Pfister no set
O debate tecnológico é interessante ao salientar, embora de forma ingênua, os males da hiper-conectividade e o conflito religioso entre o conceito divino e a existência de outra entidade toda-poderosa. De certa forma, é um reflexo da rejeição criada em muita gente que foi, ou é, vítima da própria superexposição voluntária nas mídias sociais. Há mesmo um limite entre a vida real e a virtual? As duas precisam ser combinadas? O que o Criador pensaria disso tudo? A discussão é trazida a baila por uma ala radical que demoniza a noção de uma IA e a vida online. E aí toda a trama começa.
Johnny Depp é Will Caster, um gênio à lá *inclua aqui seu techguru favorito* disposto a criar esse novo “deus” em nome da evolução humana. Ele catalisa diversos elementos: o criador, a criatura, a ameaça e a solução. Entretanto, como muito no mundo moderno, a história passa muito tempo analisando o sujeito pela imagem que ele gera e não, necessariamente, por quem ele é.
Toda a estrutura do roteiro de Jack Plagen parte desse preceito frágil, de que não conhecemos o protagonista ou sua índole. “Transcendence” se propõe ao estudo dos medos humanos, das limitações, do que faríamos se recebêssemos o poder divino da onipresença e onisciência e esbarra num simples elemento ao se esquecer do que nos faz mais humanos e apaixonados: uma simples conversa de alcova, um sorriso, algo que só quem ama entende.
Tal qual uma linha de programação tradicional, o roteiro apenas executa uma série de ações e reações desprovida de emoções ou significado. Paul Bettany, no papel do cientista dividido entre fé e ciência, até tenta manter o elemento humano depois que Caster assume a forma digital, mas também é vítima da estrutura ao sofrer um dos piores arcos dramáticos da carreira. Como aceitar transformações comportamentais e mentais que não estão representadas por ações em cena?
Pfister entrega uma história com “cara” de diretor iniciante e engajado, repleta de hipérboles presentes apenas na intenção dos atores, mas tira pouco proveito do elenco a seu dispor
Mesmo grandes atores, como o caso de Bettany, tem um limite para se expressar facialmente. Em muitos momentos faltam palavras, faltam razões ou mesmo pistas para justificar certas decisões. Nem de longe é um caso de ser um filme de difícil compreensão, pelo contrário, ele acaba por reduzir os temas propostos ao longo da trama e, no final, o espectador se vê diante da velha mazela humana: destruir o que não entendemos é a única solução. Se certa ou errada, é outra discussão, mas o paradoxo está formado.
Se um ser mais inteligente que toda a raça humana combinada é capaz de mudar, e melhorar tudo, só mesmo a mente medrosa e insegura de indivíduos crentes no controle de suas próprias vidas para impedir um grande salto evolutivo. De qualquer forma, é um questionamento válido, afinal, a Era da Informação não tem gerado mais inteligência e, no máximo, replica e reverbera as descobertas de grandes mentes, em vez de servir como degrau para um maior entendimento da vida.
Longe da fotografia, agora assinada por Jess Hall (“Grindhouse” e “Chumbo Grosso”), Pfister entrega uma história com “cara” de diretor iniciante e engajado, repleta de hipérboles presentes apenas na intenção dos atores e distante da realidade em tela e tira pouco proveito do elenco a seu dispor, com Morgan Freeman descartável e Johnny Depp com pouco tempo de tela. “Transcendence” pode levantar algumas questões, mas fica em cima do muro sem convencer nenhum dos dois lados da moeda. É uma pena, pois o potencial era gigantesco. E pensar que tudo teria sido diferente se dois personagens tivessem feito a coisa mais simples: conversado.
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Fábio M. Barreto é roteirista em Los Angeles, autor de “Filhos do Fim do Mundo” e produz o canal “Barreto Unlimited” no YouTube.
Post originalmente publicado no Brainstorm #9
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